São Paulo, quinta-feira, 4 de abril de 1996
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Semana Santa

OTAVIO FRIAS FILHO

Se a Bíblia fosse apenas uma obra literária, o Deus do Antigo Testamento seria um personagem condenado a sofrer uma decepção atrás da outra. Ao longo das várias narrativas, o esquema é quase sempre o mesmo. A fim de se certificar da aceitação de sua divindade entre os homens, Deus estabelece uma proibição qualquer, que eles fatalmente violam.
O caso de Jó, que se mantém fiel apesar das provas a que é submetido por conta de uma aposta entre Deus e Satanás, é exceção. Normalmente, Deus é desapontado, torna-se colérico e ameaça destruir a Criação. Nesse ponto um líder da comunidade eleita costuma interceder; Deus volta atrás, há uma espécie de negociação.
O cataclismo é postergado ou então Deus admite que um punhado de justos se salve. Abraão chega a sofismar com Deus, ao perguntar se Sodoma deve perecer ainda que ali haja 50 justos (Deus diz que não), e vai decrescendo o número até perguntar: e se houver apenas dez? Ao final, Sodoma é consumida em fogo e enxofre, Ló e sua família são salvos.
O ancestral mítico da lista de Schindler é a lista de Abraão. A cada negociação dessas, como que contrariado por haver cedido, ou na esperança de evitar novos dissabores caso suas instruções sejam mais específicas, Deus estabelece outros interditos, chegando aos detalhamentos incríveis da lei judaica. Inútil: Deus muda, quem nunca muda é o homem.
O Deus do Antigo Testamento sofre de uma espécie de síndrome do monoteísmo. Numa época em que os povos eram politeístas e a tentação de regredir para crenças arcaicas ainda muito forte, é natural que o Deus único apareça como paranóico, inseguro, ciumento até a brutalidade na sua intransigência em dividir os céus com qualquer outro.
Do ponto de vista literário, a narrativa bíblica contém, assim, uma pedagogia divina, o relato de como Deus evolui, em termos de tolerância e magnanimidade, ao aprender com os erros dos homens. De fato, fora dos mistérios da fé, que finalidade ou sentido poderia ter a Criação exceto o aperfeiçoamento de Deus?
O apogeu da evolução é o Novo Testamento, onde Deus reaparece sem ilusões, "consciente" de que o erro é o estado natural do homem. Deus se seculariza, aproxima-se do erro ao se fazer humano, enquanto sua versão antiga é afastada, tornando-se o "Deus oculto" de Pascal: tão assíduo no Velho Testamento, nunca aparece ao vivo no Novo.
De tempos em tempos, toda religião sofre surtos de fundamentalismo, de retorno às suas origens mais literais e primitivas. Esse mecanismo paradoxal permite que as religiões, ao se voltarem para o passado, renovem-se. Apesar disso, o desenvolvimento que resulta das idas e vindas é sempre no sentido da secularização.
Claro que a Bíblia é um livro religioso, de forma que toda essa interpretação estaria de cabeça para baixo: não é Deus quem evolui, mas a nossa percepção, cada vez mais nítida, embora sempre precária, de sua presença. Nem é tanta diferença assim, pois mesmo para quem tem fé a salvação, como diriam nossos governantes, é um processo.

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