São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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A grande saúde

EM PARIS

Lucien Sfez, professor da Universidade de Paris, pesquisou durante cinco anos como se elabora a utopia da "saúde perfeita"', a nova visão do que deve ser o progresso humano. Ouviu histórias sobre extirpação preventiva de seios em salões americanos. Conheceu os inventores da vida do futuro, os ciberseres, seres vivos no computador, o aspecto mais ficcional da utopia da vida pura e perfeita.
Na Califórnia, viu o lado mais cotidiano e realizado da "Grande Saúde": os testes de genes defeituosos de fetos já são obrigatórios, pela lei do Estado e pela lei das seguradoras, que não querem colocar dinheiro na vida "imperfeita".
"A ideologia do progresso humano ganhou novas cores. E práticas", diz. A nova religião pretende corrigir não só a tendência hereditária ao câncer, mas o vício em drogas, a depressão, a inadaptação social. No bojo desses sonhos, está o projeto de eliminar a mediação política para resolver os problemas humanos: eles estariam no nosso corpo e no do planeta, e a ciência daria conta deles. Nesta entrevista concedida à Folha em Paris, Sfez conta como se forma e expande a religião ecobiológica.
*
Folha - Como se articulam nessa utopia, a "saúde perfeita", como o sr. a define, coisas como a histeria contra o fumo, o colesterol, a genética e o ambientalismo?
Lucien Sfez - A princípio não pesquisava uma utopia. As coisas foram se encadeando, dos problemas cotidianos aos grandes investimentos de pesquisa.
Na classe média-alta e na elite, as pessoas desprezam os fumantes, conversam sobre colesterol, dicas de comida livre de gordura, "not fat". Fala-se disso como na Europa se conversa sobre política.
Um dia encontrei uma cara amiga, que faz parte desse meio chique, o novo meio radical-chique, universitário e elegante da Costa Leste americana. A conversa, a mesma de sempre, a comida certa. Perguntei como ela ia. Não muito bem, um problema de saúde. Era grave? "Poderia ser, virtualmente". Ela tinha pedido para o médico tirar os ovários preventivamente! Porque a mãe e a tia tiveram problemas com os ovários, mas ela não tinha nada. Fiquei estupefato e perguntei como o médico tinha concordado com uma coisa dessas, pois na França isso jamais seria feito. Ela me disse que negociou com os médicos: se tirassem os ovários ela não tiraria os seios preventivamente! Foi então que descobri que era uma prática comum nos meios "in" americanos tirar os seios preventivamente.
É a purificação preventiva do corpo por meio dos transplantes e da retirada de órgãos. É um elemento da utopia do corpo, dos problemas cotidianos com a saúde com os quais cada um de nós tem de lidar. Mas isso é apenas parte de uma visão das coisas que conduz a um novo tipo de utopia, que se realiza enquanto é imaginada. É o projeto da purificação genética por meio do mapeamento dos genes e doenças genéticas, o da purificação do planeta, o da criação da vida perfeitamente pura, a vida artificial.
Folha - São os elementos do que o sr. chama de "A Grande Saúde"...
Sfez - O termo se aplica a este homem novo, que estaria além da nossa infeliz existência humana, que atingiria a imortalidade, que não precisa em nada de Deus, moral e metafísica. O mal estaria no corpo, seria tratado pela ciência, sem mediações políticas. Meu objetivo tornou-se então descrever os discursos e as práticas que novamente organizam o sentido, ou melhor, que o produzem, em forma de utopias científicas.
Sem percebermos, essa utopia funda uma visão global da sociedade futura. Trata-se da "Grande Saúde", que tende a se impor como único projeto mundial.
Folha - Parece-me que o sr. diz que a "saúde perfeita" é tanto ideologia como utopia. A ideologia camufla, é "uma mentira socialmente necessária". Uma utopia é a ficção num tempo e lugar desconhecidos. Como a "Grande Saúde" se encaixa nessas definições?
Sfez - As utopias mudaram de signo e a ideologia perdeu a sua base tradicional. As utopias não se opõem mais à realidade e a ideologia deixou de ser um signo das coisas para se transformar em signos-coisas, coisas-signos.
E o inimigo não está mais no exterior, para ser combatido ou civilizado. Não é mais o selvagem, o negro, o judeu, o burguês. O inimigo está dentro de nós, na cidade poluída, nos nossos genes, na camada de ozônio, na droga, no colesterol, anônimo, e quem o combate é a tecnociência onipotente. A ideologia está aqui, mas como que entrelaçada na utopia da saúde perfeita do corpo e do planeta, interdependentes. E essa utopia é prática. Na "Saúde Perfeita" quero falar dessas utopias que se realizam e acabar com essa estupidez de opôr utopia à realidade.
Folha - Se a narrativa utópica de hoje é inseparável da sua realização, como ainda se pode chamá-la de utópica? Não é apenas uma falsa promessa, como a da ideologia?
Sfez - A purificação orgânica, de que lhe falei, é uma prefiguração da purificação genética que se articula com a purificação do planeta, sem o qual não é possível a saúde perfeita, e vice-versa.
O primeiro grande projeto utópico é o projeto Genoma Humano, o mapeamento de todos os genes humanos, que pode permitir o mapeamento das doenças transmissíveis hereditariamente.
O sonho derivado do projeto Genoma é a busca da perfeição, da reconciliação do homem com sua natureza original pura, a nostalgia do ser perfeito, busca fetichizada pela mídia, pelos laboratórios, pela qual se interessaram as seguradoras, que não querem garantir mais seres imperfeitos, quando se pode saber quem são essas figuras de alto risco.
Com isso, a ideologia do progresso humano ganha novas cores. Ele se dá pela correção dos maus genes. A perfeição é a saúde, individual. O diabo está em nós: a droga, a depressão, quem sabe o problema dos sem-teto (ri) está nos nossos genes. Os problemas são medicalizados, neutralizados, nos dois sentidos da palavra...
Folha - Mas a utopia também é ambiental...
Sfez - Claro, a purificação geral do corpo ainda depende da purificação geral do planeta, "experimentada" no projeto Biosfera 2, aquele grande hangar plantado nos espaços vazios do Arizona. O que era isso? Um microcosmo, todos os ambientes naturais da Terra reproduzidos numa grande hangar de vidro, isolado, onde quatro homens e quatro mulheres, plantas, porcos e cabras se fecharam entre 1991 e 1993 para viver de maneira ambientalmente perfeita.
Uma das participantes da Biosfera me disse: "Respiro um ar completamente puro, como a comida mais pura, temos a melhor saúde do mundo". Na verdade eles estavam morrendo de fome. Eles tinham uma taxa de colesterol baixíssima. Se isso é um critério de boa saúde, eles estavam bem. A experiência teve vários problemas, mas isso é outra história.
A Biosfera 2 também foi mediatizada, foi uma empresa de investimento pesado, que procurou se pagar cobrando ingressos de visitantes e foi discutida também como uma empresa da ciência.
Estes dois projetos, o Genoma e a Biosfera, não são utópicos porque não são realizáveis -nós sabemos que eles foram implantados ou estão em via de. O que importa é que eles fazem parte de um conjunto de elementos ideológicos que projetam o futuro da humanidade e do planeta. O projeto Genoma passa a idéia de uma correção de tudo aquilo que dentro de nós nos conduz à morte. É a quase imortalidade, é a "Grande Saúde".
O Biosfera quer integrar tecnologia e natureza para uma vida perfeitamente equilibrada no planeta. Isto é: a vida saudável da Terra como suporte da saúde humana. São projetos globalizantes, com uma lógica totalitária como a das utopias clássicas, mas fundados cientificamente.
Folha - E onde entra a vida artificial na utopia?
Sfez - A "artificial life" faz parecer extremamente mesquinhos todos esses procedimentos, que são no fundo quebra-galhos. Para se chegar à perfeição é preciso quebrar galhos. É preciso reparar um genezinho aqui, outro lá, é preciso fazer grandes obras como a Biosfera 2 para se conseguir uma atmosfera purificada e todas essas coisas. Mas a "artificial life" é perfeita logo de cara. O teórico dessa nova moda americana, Christopher Langton pensa nos nossos sucessores: seres artificiais, imortais, puros, mas vivos. Para ele, no futuro eles terão poderes, vão cometer erros, vão matar, é preciso imaginar sanções para estes erros, uma escala de erros, um direito dos seres cibernéticos.
Folha - Não se trata de uma utopia, mas de projetos utópicos, ou então algumas dessas utopias são apenas uma metáfora...
Sfez - Não, não, os traços da utopia da saúde perfeita, os seus "marcadores", são os mesmos das grandes narrativas utópicas, clássicas, dos séculos 16 e 17, da "Utopia" de More, de 1516, por exemplo. Elas propõem uma cura para as almas e para os corpos, para o bom governo. Todas se realizam em países imaginários e são um espelho, uma imagem invertida, dos problemas da vida da época. Todas são definidas por traços de gênero.
O primeiro marcador é o lugar fechado em si mesmo, isolado de toda contaminação. Um viajante a descobre e conta tudo sobre essa "ilha". Na verdade, o viajante é o narrador que controla a narrativa, determina todas as regras do jogo, como os legisladores que comandam o reino utópico.
O reino da utopia é o das normas de vida higienistas. As infrações são punidas severamente. Há listas do que se pode comer, se deve ser casto, o adultério é uma falta grave. A alma e o corpo devem ser limpos e obedecer a leis ferozes.
O imaginário técnico é outro marcador da utopia. A técnica instaura um mundo a sua imagem, sem mediações políticas, simbólicas, nada, um pouco como se quer a Internet hoje em dia. Outra característica da narrativa utópica é o retorno à origem, ao estado de graça original, ao Éden, que tem de ser reiventado, pois perdemos nossa pureza: esse retorno, artificial, se dá por meio da técnica.
Folha - A Biosfera, ela é realmente isolada mas...
Sfez - E o Genoma também. Os laboratórios são fortalezas contra o roubo das patentes ou empresários exploradores. Os narradores onipotentes são os cientistas com seu discurso em si mesmo incontestável. O imaginário técnico dispensa comentários. As regras de vida higiênicas da Biosfera são tomadas como o comportamento modelar da humanidade, os ambientalistas são como os legisladores. O retorno à origem é o reencontro de Adão antes da queda, uma espécie de Adão perfeito, o Adão do paraíso terrestre, geneticamente purificado. O que é a Biosfera 2? O paraíso terrestre. Do lado dos genes, quer-se encontrar o puro em si. O homem selvagem. Os dois projetos se fundem nisso: a origem sonhada, o Éden, antes das doenças, da poluição.
Folha - Os marcadores são os mesmos, mas num caso se trata de textos, da utopia tradicional, uma crítica, e na saúde perfeita temos práticas e uma adesão voluntária à realidade tal como ela está se construindo. A relação com o imaginário é completamente diferente...
Sfez - Esse era meu problema, fiquei um ano refletindo, era preciso dar uma explicação para isso. O projeto utópico da Grande Saúde existe, é realizável, está sendo realizado. Mas como?
A diferença se operou na prática, por meio do "technological utopianism" americano. A utopia que serviu para a construção da identidade americana não era uma refundação ou uma crítica de uma realidade detestável, como a de More e outras, mas uma construção. A técnica e as invenções, a transformação da realidade por meio delas, é a base do sonho americano.
Tudo isso está relacionado a uma concepção americana da natureza e do controle do corpo. Um exemplo é o movimento pela alimentação saudável dos anos 30, que deu no doutor Kellogg, que inventou os "corn flakes", a comida pura e saudável para um corpo e alma saudáveis e puros. Aqui você tem um exemplo de uma narrativa utópica que é uma prática, a ideologia da vida pura e natural do século 19 americano virando prática. A conquista da natureza selvagem é outra característica. A construção sobre o nada, de que já falei.
Folha - Mas como se expande esse curto-circuito americano entre narrativa utópica e prática? E as diferenças de cultura? Sabe-se que o capitalismo quase faz terra arrasada das diferenças culturais. Como se dá essa adesão no caso das utopias?
Sfez - Não é preciso falar de capitalismo. A difusão do projeto utópico se dá pela difusão da própria tecnologia. Nós caminhamos no diapasão da tecnologia americana. Não há mistério aí.
Folha - Mas no caso da cultura, o sr. mesmo conta as diferenças da concepção de corpo no Japão, da relação entre corpo e alma para os japoneses...
Sfez - Esse é um grande assunto, muito complexo, sobre o qual ainda não posso falar de maneira rigorosa, por enquanto. Sim, a maneira pelo qual a cultura japonesa encara o corpo e a natureza são evidentemente diferentes da americana, que por sua vez é diferente da francesa. Para o pensamento japonês, a alma e o corpo são uma unidade, como homem e natureza. Uma amputação de parte do meu corpo também o é da minha alma. Há uma visão holística do corpo, e mais do que isso. Os transplantes são muito mal vistos, têm de ser decididos pela família e, ainda em 1994, o comitê de ética médica dizia que o transplante de coração não era desejável do ponto de vista da mentalidade japonesa, devendo os médicos, portanto, esperar o coração artificial. É evidente que isso é um resumo muito grosseiro de parte da concepção japonesa. É claro que, decidido o transplante, eles têm a técnica para fazê-lo etc. Mas, enfim, o que eu queria dizer é que as culturas tradicionais serão atropeladas pela biotecnologia.
Folha - Parece provável, mas não está muito claro como. O mercado se universalizou, há Benettons e McDonald's em todo canto, mas ainda há castas na Índia.
Sfez - Fiz conferências em universidades no Brasil e disse às pessoas o que disse mais ou menos no Japão. Perguntaram-me o que eu pensava de uma "medicina brasileira", natural, da concepção total de corpo, sintética. Respondi que essa vai ser uma concepção dos pobres, pois os ricos vão se tratar pela concepção analítica, totalmente analítica, não mais órgão por órgão, mas gene por gene, e nós teremos uma sociedade completamente dual. Por que as pessoas pretendem fazer uma defesa humanista, contra a pressão avassaladora e até totalitária da ciência, se recorre a argumentos um pouco etnológicos, antropológicos. Defende-se então um tipo de irracionalismo, esse tipo de coisa, você sabe muito bem que isso existe, não vou citar nomes, pois não é meu papel atacar pessoas...
Folha - Depende da universidade, não são todas assim...
Sfez - Mas você sabe que existe, e nas universidades, não falo de São Paulo, mas no Rio, Salvador e Recife encontra-se essa mentalidade que consiste em dizer que Aristóteles é mau, que Descartes é mau, que a Europa é má, que os brasileiros têm uma identidade que se manifesta nessa idéia de corpo total etc etc. Então eu disse: atenção, pois os japoneses dizem a mesma coisa, também têm uma imagem do corpo total. Em nome disso, de identificar por exemplo o coração com a alma, eles se recusam a se submeter a transplantes cardíacos.
Por enquanto eles se recusam, mas os ricos japoneses já fazem transplantes no exterior. Quando se perceber os benefícios que pode trazer a biotecnologia, vai se achar que o corpo não é tão total assim e que vai ser preciso levantar todas essas proibições. Será a indústria que vai levantar as proibições morais e religiosas. Tome nota. Vai haver a medicina desse corpo total, psicossomático, e haverá a medicina dos ricos, que sabem muito bem o que fazer neste caso. Nas clínicas mais importantes de São Paulo e do Rio, eles vão ter à disposição as terapias gênicas e lhe asseguro que eles acorrerão em massa a essas clínicas, e eles serão curados.

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