São Paulo, segunda-feira, 8 de abril de 1996
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Senso e censos

DARCY RIBEIRO

Gosto muito do Brasil. Muito demais. Sou patriota à moda antiga, verde-amarelo, vibrante. Sendo esse o meu jeito, nada mais natural que me preocupe com o Brasil, que tome conta, que sofra e até tenha ciúmes. Fico danado quando vejo alguém nascido aqui ter descaso pela patrinha.
Digo isso hoje, aqui, porque andei examinando umas estatísticas demográficas. Elas mentem muito, são manipuláveis para provar as teses mais desencontradas. Mas estou certo de que sei fazer uma leitura honesta e séria delas.
Sempre me assombrou que o censo de 1991 encontrasse tantos brasileiros de menos. Todos esperávamos 160 milhões e ele só registrou 146 milhões. Isso significa que 14 milhões se escafederam. Nem chegaram a existir, talvez.
Por quê? A fome é muita e é mortal. Os genocidas são talvez piores que a fome. Uma multidão de médicos anda pedindo gorjetas para converter cada cesariana numa castração.
Em 1950 havia no Brasil mais de 5.000 mulheres que tinham tido mais de 25 filhos. Agora, as danadas não querem ter nem dois; se um morre, e isso costuma acontecer, não se consegue nem manter a população, a reduzem. Drasticamente. Além da fome e da castração matarem, elas envelhecem a população. Nós tínhamos mais de 50% de jovens menores de 18 anos, hoje eles não chegam a 40%.
Os senis, como eu, aumentaram muito. Inutilmente. A carga que pesa sobre os que trabalham e ganham para manter o Brasil aumentou tremendamente. Estamos ficando iguais a países velhos como a França, onde há mais anciãos que meninos. Mas é diferente.
Lá, eles senilizaram sua população em consequência do desenvolvimento econômico-social. Aqui, isso está sendo feito em lugar do desenvolvimento.
Por meio de uma política socialmente irresponsável que pode perenizar o atraso. Tenho razão para preocupar-me?
Mas há mais. Um sábio mineiro, calculando nosso desenvolvimento populacional de 1980 a 1991, acha que perdemos 1 milhão de habitantes. Outros avaliadores calculam a perda em 3 milhões de crianças e gente com menos de 30 anos. Para onde foram? Há quem diga que emigraram clandestinamente. Para onde?
Um dado pior ainda é o da redução do número de menores de 15 anos dos últimos três recenseamentos. Em 1970 eles eram 41,9% da população. Em 1980 se reduziram a 38,2%; perdemos, pois, 3,72%. Em 1991, os menores perfaziam 34,7% do total. A perda foi ainda maior, de 3,59%, que equivale a cerca de 5,5 milhões de crianças.
Que está havendo? Estarão implantando clandestinamente no Brasil a "Proposta Modesta" de Swift? Ele sugeria em 1700 que se carneassem as crianças irlandesas para vender sua doce carne, a fim de melhorar a dieta dos ingleses e acabar com a fome na Irlanda.
Passados três séculos, a Irlanda é aqui. Também no Brasil ninguém propôs nada sério para socorrer a tantos milhões de crianças morrendo de fome.
Não tenho a coragem de Swift, mas aprovaria um projeto para carnear os maiores de 60 anos, a fim de dar alguma comida à criançada.

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