São Paulo, quarta-feira, 10 de abril de 1996
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Beatriz Segall enfrenta a terceira morte

ELVIS CESAR BONASSA
DA REPORTAGEM LOCAL

A separação amorosa é a experiência mais próxima da morte, diz o psicanalista alemão Igor Caruso. A morte do ser amado, tema da peça "O Lado Fatal", seria portanto um morrer duplicado.
O esforço do texto, escrito pela gaúcha Lya Luft como poemas, é evitar uma terceira morte: a do amante que sobrevive, sozinho, e acha que deveria morrer também.
Luft escreveu "O Lado Fatal" após a morte do marido, o psicanalista Helio Pellegrino, em 88. O diretor Marcio Vianna (o mesmo de "O Futuro Dura Muito Tempo") viu na sequência de versos a estrutura dramática de um monólogo, entregue à Beatriz Segall.
Vianna só pôde presenciar a montagem pública da peça em duas pré-estréias no final do ano passado, no Rio. Morreu no último mês de fevereiro, aos 45 anos.
O espetáculo encenado agora preserva a mesma montagem: uma escultora que faz na argila a imagem do amado que morreu.
Enquanto molda, realiza o trabalho do luto. Rememora cenas do convívio, chora a dor da perda e afinal se liberta do peso da morte do outro. No final, a estátua está coberta, embrulhada, amarrada. A morte se consuma também psicologicamente para a escultora que pode, então, reiniciar sua vida.
"É um trabalho de luto mas também de renascimento", diz Beatriz Segall. Segundo ela, Lya Luft fez apenas duas exigências para a encenação de seus versos: que não fosse um "recital" e que trouxesse uma "mensagem de esperança".
Nada na montagem permite no entanto uma esperança fácil, baseada na crença em outras vidas ou reencontros. É um confronto humano com a morte, é uma reconciliação terrena com o desaparecimento, sem ser uma negação.
"Apesar da ruga a mais/e o olhar mais triste,/devo-te isto:/voltar a amar a vida/como agora amas, inteiramente,/a tua morte" são os versos que encerram a montagem.
A peça convida ao emocionalismo. Mas, segundo a atriz, nunca a custa de pieguices. "Há muita emoção, mas a própria poesia não permite pieguice, é um sentimento verdadeiro, de imensa dignidade."
A atriz conta que nos ensaios viveu a carga mais pesada dessa emoção. "Os ensaios são a parte mais dolorosa, o personagem fica o tempo todo com você, até em casa. Com o espetáculo em cartaz, o personagem fica na coxia."
Entre os momentos mais fortes estão trechos que contrastam o mundo cotidiano, inconsciente, e a consciência solitária de que "o amado" morreu. Por exemplo:
"Levantar-me da cama cada dia é um ato heróico,/acender o cigarro, atender o telefone(...)Na frente do rosto afivelei a máscara/para que os outros me suportem:/atrás dela, o redemoinho/do sangue da solidão borbulha sem parar."
Muita gente chora ao ver a peça, diz Beatriz Segall, lembrando-se das duas pré-estréias no Rio. É o preço para encarar tão de perto o enfrentamento e a fuga da morte.

Peça: O Lado Fatal, de Lya Luft
Direção: Marcio Vianna (in memorian)
Com: Beatriz Segall
Onde: Sesc Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, tel. 011/256-2281) Quando: estréia amanhã, às 21h
Quanto: R$ 30 e R$ 15

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