São Paulo, sábado, 13 de abril de 1996
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Direito a reboque

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O rosto sorridente do ministro dos Esportes e de Assíria, sua mulher, ao anunciarem bem sucedida gravidez em laboratório, produz um efeito na área jurídica, por mais paradoxal que isso possa parecer: mostra que o direito se acha a reboque da ciência, pois essa vem criando situações novas, de extraordinário significado jurídico, sem que a ordem legal as acompanhe.
No caso do ministro Edson Arantes do Nascimento e de sua esposa, a reprodução assistida homóloga não oferece problema. Tanto o sêmen quanto o óvulo foram colhidos do próprio casal. Sendo ambos legalmente casados e tendo contribuído para a formação do embrião colocado segundo técnica do cientista brasileiro Roger Abdelmassih, o filho que deles nascer será -para todos os fins e efeitos de direito- igual aos demais.
Todavia, esquecido o caso do ministro deve-se pensar nas hipóteses que a reprodução assistida gera sérias dificuldades. Tomemos o exemplo recentemente discutido da senhora, cujo marido faleceu há anos e pretendeu ser engravidada pelo sêmen dele, conservado em temperaturas ultra-baixas. A vontade dela deve ser a única diretriz aceitável? Penso que sim. Todavia, admitamos que ela, tendo enviuvado, casou de novo. Ainda assim sua vontade será independente da concordância do novo marido? Lembro os deveres recíprocos entre os cônjuges, iguais em direitos e obrigações, o que lhes tira muito da liberdade de decidirem unilateralmente.
Outro caso: mulher sexagenária, ante a impossibilidade da filha casada engravidar, recebe o embrião formado em laboratório, com óvulo e sêmen fornecido pelo casal. Deve predominar a decisão dos envolvidos? No meu entender, a solução é a mesma: o assuntos é da intimidade deles e ninguém mais tem com isso.
Apesar das opiniões manifestadas, registro que o direito limita a disponibilidade do próprio corpo. Caso característico é dos transplantes. São permitidos, para pessoas vivas, para órgãos duplos (rins, por exemplo). Mas, pergunto: o leitor admite que parte de um órgão (o fígado exemplifica a hipótese) seja retirada, quando não prejudique a saúde do doador? O transplante a contar de cadáveres envolve a técnica de determinar a morte, questão difícil do ponto de vista legal, moral e religioso. A ciência aceita a morte cerebral, mesmo com o coração batendo. E o leitor?
A reprodução assistida tem longa série de alternativas que o direito não contempla. Suponhamos um casal ocidental impossibilitado de gerar e que contrata uma clínica especializada, provida de banco de embriões. Por erro da clínica a mulher dá à luz uma crianças com traços orientais, o que pode ocorrer na reprodução heteróloga, em que nem o óvulo, nem o sêmen são dos esposos. O filho, porém, nasceu da mulher. Ela e o marido são responsáveis pela criança? Ainda que não a queiram? A responsabilidade será só da mulher? Têm direito de rejeitar a criança? Se puderem rejeitar, quem se encarregará dela?
O exemplo mais frequente é o do ventre de aluguel e da recusa de entregar o filho gerado em laboratório. Contudo, a hipótese mais angustiante para o direito é a de, nascida a criança, os contratantes não quererem recebê-la, ou porque se separaram depois da inseminação, ou porque o bebê nasceu defeituoso. Fica o problema para o leitor pensar na solução.
O direito brasileiro não tem acompanhado a evolução científica. Em outros países, a Espanha, por exemplo, há regras determinando soluções para as consequências da reprodução assistida. Nossos juristas errarão se cogitarem de enfrentar o problema quando a ciência inventar o útero artificial, em que tudo se passará dentro da máquina, sem participação do homem e da mulher. Huxley previu essa hipótese. Ela não está longe do tempo.

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