São Paulo, sábado, 13 de abril de 1996
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O século acaba entre a macaca e o computador

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Enquanto não inventarem um computador que sofra eles não sossegam. O objetivo é o que os técnicos estão chamando a criação da perfeita inteligência artificial (AI, como se abrevia em inglês) mas fica sempre faltando alguma coisa, que é o sofrimento que acompanha ou até determina a inteligência não-artificial, humana.
Quando Garry Kasparov, o campeão mundial de xadrez, perdeu uma partida para o computador chamado Deep Blue, ficou danado da vida. Exatamente como quando Karpov, outro campeão enxadrista soviético, perdia para Bobby Fischer. Kasparov tratou de transformar seu despeito em paciência, analisou calmamente o jogo, descobriu o truque de Deep Blue e ganhou outro dia a partida definitiva. Se a IBM, que montou Deep Blue, conseguir introduzir humilhação e inveja em seu Frankestein talvez acabe por ganhar de Kasparov.
Está na hora de informar ao leitor que não entendo rigorosamente nada de xadrez e que só andei lendo o relato de tais jogos quando, anos atrás, o craque que fazia tremer os campeões russos era esse tal Bobby, americano meio genial, meio doidão, que desapareceu inteiramente do mundo do enxadrismo e do mundo em geral. Como bom excêntrico que é, Fischer nem exibe suas manias nem fala em suas tristezas. Deve andar chateado com o prestígio da tal inteligência artificial de Deep Blue, e, queira Deus, um dia desses sai do seu eremitério, que não sei onde seja, e desafia o computador para um combate singular. Talvez só Bobby Fischer consiga pôr Deep Blue em lágrimas, alegrando, assim, toda a estranha seita dos informáticos do mundo.
Essa comunidade, cada dia maior e mais metida na vida de todo o mundo, não passa da velha cibernética criada por Norbert Wiener meio século atrás. Acho que a cibernética era mais moderada e científica, mais de cabotagem que transatlântica. A informática é espacial, sideral e não anda atrás de novas máquinas e sim de um homem novo. Quer fazer um enxadrista que não perca de Kasparov nem de Bobby Fischer. Quer fazer um sábio, que, se perder do homem em algum terreno, será uma desonra para a ciência.
Não que venha a ter alguma espécie de "alma", coisa que os homens imaginaram grudada em si mesmos na fase pré-científica do seu desenvolvimento. "Alma" é palavra obsoleta, conceito abolido. Mas o novo homem informático terá conservado seu orgulho, isto sim, do qual necessita para progredir sem cessar. Antigamente, nos dias em que fazia muita asneira e caía em depressão e temor ele falava na tal alma, mas era pura conversa.
O primeiro macaco que Darwin viu em sua vida foi no jardim zoológico de Londres, em 1838. Aliás, era uma macaca, uma orangotanga, graciosa, enfeitada pelos curadores do "zoo", e que tinha sido apresentada, vestida de seda e cheia de balangandãs, à Duqueza de Cambridge. Darwin olhou, numa espécie de êxtase científico, aquela peluda senhorinha que só faltava falar inglês e atendia pelo nome de Jenny Orangotang. Vai daí, o tratador de Jenny resolveu fazer uma brincadeira. Tirou do bolso uma maçã, que ofereceu à jovem "lady" símia, que lhe estendeu com graça a mão, para pegar a fruta. O guarda fechou a mão, encolheu o braço. Jenny, incrédula, adiantou mais a mão. O guarda recuou mais a sua, com a maçã. A educação e o orgulho de Jenny ainda resistiram um segundo. Mas quando finalmente a maçã voltou ao bolso do guarda, Jenny, como se diria mais tarde num certo país tropical, rodou a baiana e soltou a franga. Deu um berro, um salto, atirou-se de costas no chão levantando a saia e rugindo, às lágrimas.
Na melhor e mais recente biografia de Darwin, escrita por Adrian Desmond e James Moore, duas coisas ficam claras: que ele jamais esqueceu o ataque de raiva de Jenny Orang e que sua idéia da seleção natural não é a que engendrou a idéia hoje chamada de darwinismo social, isto é, a de que o mais forte esmaga, por sua própria natureza, o mais fraco.
Darwin queria, isto sim, que os mais aptos prevalecessem, por serem mais fortes de espírito e não de muque. Não existe prova maior disto do que o horror que nutriu a vida inteira pela escravidão dos negros. Viajando no navio "Beagle" ele esteve na Bahia, em Pernambuco, no Rio, e, invariavelmente, seu encanto pela natureza do país foi em toda parte manchado pelo tratamento dispensado aos negros -o que trazia à sua mente os crimes dos ingleses contra os escravos, na Jamaica.
Na Jamaica daqueles dias, o governo colonial inglês, diante de uma explosão de revolta, tinha feito executar 400 negros, açoitar 600 e derrubar mil casas de suspeitos na rebelião. Isto evocava Darwin na Bahia, ao constatar que um fazendeiro, para punir negros acusados de malandragem na sua ausência, ia mandar para o Rio todas as suas mulheres e filhos, para lá serem vendidos como escravos.
Não era nem entre os poderosos ingleses do governo de Sua Majestade na Jamaica, nem entre os fazendeiros brasileiros, que faziam sua própria lei em relação aos escravos, que Darwin via o grupo humano dos que deviam sobreviver e comandar. Não eram esses os mais aptos. Eram apenas os mais violentos e selvagens.
Quanto a Jenny Orang, registram os biógrafos que Darwin mais de uma vez sorriu ao pé do berço dos próprios filhos, quando se revoltavam, esperneavam, se enfureciam com a ama. O problema, já que éramos todos filhos de uma macaca, era, pelo amor e pela educação, ir entregando cada vez mais o mundo aos mais aptos a se humanizarem.
Desconfio que a sociedade que está se firmando neste fim de século não agradaria muito a Darwin. Ele tinha desejado, do fundo do coração, que Jenny Orang evoluísse e se civilizasse. Mas virando, ao longo do tempo, gente, e não se transformando em máquina escravizada e escravocrata. Porque o computador vai sempre servir a meia dúzia de corporações e deixar sem emprego os que tiveram menos chance e menos acesso aos meios de dominar a nova ciência.
Darwin seria sempre a favor de Garry Kasparov, ou, se o encontrasse, de Bobby Fischer. Deep Blue ele enfiava num navio negreiro e despachava para a Jamaica. Ou para uma dessas fazendas brasileiras onde ainda permanece o trabalho escravo.

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