São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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Conforto mental

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

"O individualismo, o cultivo do eu e do bem-estar privado -com destaque sobretudo para o ideal de 'saúde'- são os valores que os intelectuais estão mais inclinados a subscrever."
A sentença é de Susan Sontag, em artigo publicado pelo Mais! há algumas semanas, que põe o dedo numa questão fora de moda, com o fim do sistema bipolar e o triunfo da globalização: o papel político dos intelectuais na cena internacional.
Ao se indagar sobre a olímpica indiferença de escritores e pensadores em relação ao genocídio na Bósnia, Sontag detecta um fenômeno que vai ganhando escala mundial: a vitória do capitalismo, com a propagação da ideologia do mercado e do consumo, tem levado a um crescente descrédito da "esfera política" como tal.
Esse declínio, evidenciado no desinteresse pelo voto, na falência de sistemas partidários e na emergência de amadores nas disputas pelo poder, não é alheio à consciência intelectual.
Especialmente em sociedades com alto grau de estabilidade, a mobilização de escritores e intelectuais vem se dando cada vez mais em torno de universos limitados, como o racismo, a ecologia, o feminismo ou o antitabagismo.
A redução do horizonte ocorre também na tendência a se fechar o foco no âmbito nacional -com o ocaso, na opinião de Sontag, do sentido de solidariedade internacional.
Não seria preciso citar gente como Sartre ou a presença de escritores na guerra civil da Espanha -embora a ensaísta cite- para lembrar o quanto, em tempos não muito distantes, o combate das idéias era, em outro sentido, bem mais "globalizado".
Evidentemente, as grandes ideologias, como o fascismo, o nazismo e o comunismo, que dividiram o mundo de 17 a 89, convidavam à intervenção.
Hoje, embora horrores da desigualdade e da tirania permaneçam em cena, não há mais sistemas a se filiar que se proponham a enfrentar -e resolver- as chamadas grandes causas.
No Brasil, onde parte considerável da intelectualidade está ou se sente no poder, a situação é ambígua: se há de um lado um envolvimento político, no sentido estrito, de assumir a administração do país, há, de outro (e talvez por isso mesmo), uma tendência à perda da capacidade crítica e à adoção pragmática ou cínica da lógica do Estado.
Assume-se o poder e abdica-se dos princípios -não, evidentemente, sem a devida absolvição promovida por uma consciência que, de um lugar distante da prática, tudo explica e justifica.

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