São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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Navratilova diz que prefere as loiras

SUZANNE WESTENHOEFER
DA "THE ADVOCATE"

"Escuta, Suzanne, tem uma coisa que eu quero acrescentar à entrevista. Eu disse que gosto de loiras, mas só isso não basta, sabe. Elas precisam ter alguma coisa aqui dentro", diz Martina Navratilova, apontando para seu coração, num gesto quase infantil.
Mais parecida com um garotinho vulnerável do que com a muscular tigresa do tênis que conquistou insuperáveis nove títulos em Wimbledon, Martina se inclina para reiterar: "Não serve se não tiver um bom coração".
E, depois de um dia de bate-papo com franqueza, percebo que Martina quer que todos saibam que, após os elogios, o mais importante para ela é encontrar a parceira certa -uma mulher de bom coração.
Martina está em Nova York para promover um cartão de crédito destinado a gays e lésbicas.
Ela transformou o que estava previsto para ser uma entrevista de uma hora no saguão do hotel Waldorf Astoria numa maratona que durou o dia inteiro e incluiu um jantar com Billie Jean King (ex-tenista) e um show do cantor Elton John, depois do qual falamos com o cantor no camarim, e uma festa íntima de pré-aniversário em homenagem aos seus 39 anos, em um bar de lésbicas da cidade.
Martina é uma pessoa tão fácil de se conversar que eu quase esqueço que estou diante de um dos nomes mais importantes do esporte.
Avassalador é pouco para descrever o efeito que ela exerce. Martina nunca é tímida quando se trata de verbalizar suas opiniões.
Ela criticou a imprensa por ter feito de Magic Johnson um herói quando ele revelou que havia contraído o HIV por dormir com milhares de mulheres. "Se uma mulher tivesse dito aquilo, seria muito diferente", disse. "Ela teria sido descrita como puta."
Evidentemente avessa à idéia de deixar de ser o centro das atenções depois de sua suposta aposentadoria do tênis, Martina atualmente compete em duplas no torneio Virginia Slims Legends e escreve seu segundo romance policial.
Também é comentarista de tênis nas TVs HBO e CBS. E, além disso, tornou-se porta-voz de causas ambientalistas, do vegetarianismo e -o que exige mais coragem- dos direitos civis de gays e lésbicas.
*
Pergunta - Quando você ficou sabendo do namoro de Judy Nelson e Rita Mae Brown, duas antigas amantes suas, qual foi sua reação?
Martina Navratilova - Achei normal. Pensei "elas se merecem" (ri). Depois recebi uma carta de Rita Mae dizendo: "Não sei como você pôde ficar com ela sete anos. Eu só aguentei seis meses. Ela é a mulher mais egoísta e egocêntrica que já conheci na vida".
Pergunta - Qual é a coisa mais estranha que alguém já fez para chamar sua atenção?
Navratilova - Elas me enviam coisas -tipo fotos delas com pouca roupa. Antigamente eu guardava as fotos por algum tempo, mas depois pensei "isso é cruel".
Algumas são lindas, e outras são tipo "oh, meu Deus!". Recebi uma foto de uma mulher deitada, vestindo o que parecia uma camisa de força. Ela escreveu: "Sonho com você todas as noites".
Já fui contatada por algumas pessoas muito estranhas, mas ninguém realmente ameaçador. Acho que roqueiros e astros de cinema recebem mais propostas de pessoas desse tipo. As tietes de atletas são mais ou menos normais.
Pergunta - Você é responsável por boa parte dessa história de assumir-se publicamente enquanto lésbica, mesmo que as pessoas não atribuam o crédito a você.
Enquanto jogava tênis, você era você mesma, simplesmente. Não era como se erguesse uma bandeira e dissesse que era lésbica -era lésbica simplesmente e pronto. Agora você está aposentada e está se tornando cada vez mais uma porta-voz das lésbicas. Por quê?
Navratilova - Durante dez anos eu fui bastante discreta, e por muitas razões. Uma delas é que eu não queria provocar uma reação negativa nos meus patrocinadores.
Mas, um dia, eu disse: "Foda-se tudo isso. Estou sendo discreta sempre e não aconteceu nada. Vou fazer o que tenho vontade e não o que querem que eu faça". Foi então que comecei a ser mais aberta, falar alto e virar ativista.
Pergunta - Você gosta de ser um exemplo para as pessoas?
Navratilova - Já me acostumei com isso. Eu tinha que viver no Colorado, o único Estado (norte-americano) onde a Segunda Emenda (que proíbe leis de defesa dos direitos dos gays) foi aprovada! Tentei falar com a imprensa local, mas não quiseram falar comigo.
Disseram: "Tudo bem, a emenda não vai ser aprovada". Assim, acabei virando ativista mais ou menos por força das circunstâncias. Dizem que a gente escolhe os líderes que quer seguir. Mas os líderes não escolhem ser líderes. As coisas vieram a mim em virtude de eu ser gay e não ter medo.
Pergunta - Por que você não tem medo? Você conhece gays e lésbicas famosos. Você os encontra. Eles não se assumem publicamente. Por que você é diferente?
Navratilova - Não conheço outra maneira de ser. Fico surpresa pelo fato de eles não conseguirem. Afinal, qual é a dificuldade?
Pergunta - Você se sente bem em saber que sua vida fez uma grande diferença para outras pessoas?
Navratilova - É uma responsabilidade, mas eu a assumo numa boa. Ganho o suficiente para assumir essa responsabilidade. É um privilégio saber que se pode afetar alguém tão positivamente.
Pergunta - Sem dedurar ninguém (revelando que é gay ou lésbica): você já tentou convencer quem esconde sua condição?
Navratilova - Talvez eu comece a fazer mais isso -tentar convencer as pessoas a serem abertas.
Pergunta - O que você diria?
Navratilova - Eu diria "liberdade". Deixei meu país (então Tchecoslováquia) para conseguir liberdade, e foi um risco grande: nem sabia se voltaria a ver minha família. Foi assustador, mas eu só tinha 18 anos e pensei: "Tudo bem, é moleza, vou viver para sempre".
É clichê, mas é verdade: quando uma porta se fecha, outra se abre. Quando você perde alguma coisa, você ganha outra muito maior. Se você não vive sua própria verdade, você limita seu próprio potencial.
Alguma coisa lá dentro fica embutida e não cresce. Não conseguimos nos aceitar completamente enquanto seres humanos até termos assumido publicamente nossa condição de homossexuais.
Pergunta - O que você diria à atriz lésbica não-assumida que declara que sua vida pessoal não é aquela representada na tela e que as pessoas só querem enxergá-la de determinada maneira?
Navratilova - Eu não entendo isso, porque eles aceitam heterossexuais representando gays, então por que não aceitar gays representando heterossexuais? De qualquer modo é uma ilusão.
Pergunta - Assumir-se em público é uma coisa importante.
Navratilova - É uma experiência libertadora, não apenas a de se assumir, mas de falar sobre isso em alto e bom tom. Deixei a Tchecoslováquia por várias razões. Ali, se você falasse o que realmente pensava, seria presa.
Pergunta - As pessoas deveriam ir passar um ano lá, certo?
Navratilova - Isso mesmo. Se você quiser saber o que é opressão, vá para lá. É isso o que essas emendas estão tentando fazer: nos trancar dentro do armário outra vez.
Se você já saiu de lá, eles podem aplicar essas emendas; se você ainda está lá dentro, não podem, porque não sabem que você é gay.
É por isso que fazem essas emendas para nos empurrar de volta para o armário, porque não querem que fiquem sabendo sobre nós.
Pergunta - Por que eles ligam para isso, na sua opinião?
Navratilova - Porque têm medo. Eles organizam essas manifestações religiosas com 50 mil homens brancos reunidos num estádio louvando o Senhor e reafirmando seu direito divino de serem chefes de família.
Direito divino? Estão assustados, isso sim. Estão com medo das mulheres, dos gays, dos negros. Quanto mais a gente falar alto, mais assustados eles ficam.
Pergunta - E os bares? As pessoas te abordam?
Navratilova - Costumo ter problemas nos bares. Todas querem autógrafos, e eu digo: "Não estou aqui para isso". Então se irritam.
Eu penso: "Este é o único lugar onde eu achei que poderia ficar à vontade. Não chega o fato de que já me assumi em público? Não chega o fato de eu estar aqui?". Normalmente, não há problemas, mas às vezes as pessoas ficam agressivas.
Pergunta - Mas não foi legal a primeira vez que você foi a um bar gay e sentiu que era seu pessoal?
Navratilova - Foi espantoso. Fui algumas vezes em Dallas. Foi lá que ouvi "Ring My Bell" ("Toque meu sino", música disco que virou hino das lésbicas nos EUA).
Pergunta - Estamos perto dos 40 anos de idade e você confessa que se lembra de ouvir discoteca...
Navratilova - (Ri) Pois é. Outro dia eu revelei minha idade quando saí de carro com uma amiga. Estávamos ouvindo uma fita do Abba.
Ela falou: "Essa não é a música de 'Priscila, a Rainha do Deserto' e 'O Casamento de Muriel' (filmes dos anos 90)?". Eu falei: "É o Abba. Quer dizer que você não ouvia quando eles começaram?" Ela disse que não.
Pergunta - Quem é sua parceira nos torneios do Legends?
Navratilova - Desta última vez foram Frankie Durr, Tracy Austin e Rosie Casals. Basicamente, são pessoas de 30 anos ou mais.
Eu sou a segunda mais jovem, sabia? Tenho 38 anos. É legal sentir-se jovem de vez em quando. Nos últimos anos, quando eu jogava, havia cinco jogadoras com mais de 30 anos e ainda assim eu era sete anos mais velha.
Me sentia tão deslocada. Estava distante delas duas gerações. Jogava com garotas de 15. Algumas delas ainda nem tinham menstruação e eu começando a sentir calores (da menopausa).
Pergunta - Do que você sente falta pelo fato de não estar no circuito do tênis o tempo todo?
Navratilova - Se sinto falta de alguma coisa é do tesão que você sente numa partida realmente difícil, numa final ou semifinal contra as melhores jogadoras do mundo.
Não me divirto jogando com pessoas que provavelmente vou vencer por 6-2, 6-2. Eu fico pensando: "Por que estou aqui?".
Você tem que se animar toda para essa partida sem importância, e enquanto isso a garota sente que está jogando a grande partida de sua vida porque é contra Martina.
Pergunta - E isso significa tanto para ela.
Navratilova - Exatamente. Mas se estou numa final contra Arantxa (Sánchez) ou Monica (Seles) ou Steffi (Graf), é para isso que vivo.
Se eu pudesse ter alguma coisa de volta, seria isso. Mas todo o resto que a gente tem que passar não vale a pena, não sinto saudade.
No Legends é superdivertido estar na quadra, mas depois a gente é obrigado a dar autógrafos, ir a coquetéis, entrevistas. Quero jogar tênis. O resto é um pé no saco.
Pergunta - Sempre quis saber: você ouve a gente, suas fãs lésbicas, gritando das arquibancadas?
Navratilova - Sim, claro. Sei onde vocês estão e é superlegal.
Ainda há alguns atletas homofóbicos ou que não assumem sua condição. Mas agora o que eu vejo são as mulheres que estão começando a se assumir, pelo menos umas com as outras, e é gostoso assistir ao processo.
A própria Fundação Feminina de Esportes abraça as lésbicas. Dizem: "Elas estão presentes em nosso esporte". Estão tentando combater a homofobia. Estão até promovendo workshops sobre isso e incluem o assunto em seus folhetos.
Pergunta - Imagino que haja pessoas gays no torneio.
Navratilova - Muito poucas. Quero dizer, há algumas, mas na LPGA (Associação Profissional de Golfe Feminino) a situação é outra! Em um momento, na década de 70, 60% delas eram gays.
Mas algumas se escondem tanto que chegam a só conversar com homens. Elas nem sequer batem papo com mulheres. É assustador.
Pergunta - É espantoso que alguém consiga viver desse jeito.
Navratilova - É espantoso mesmo, e por quê? Ninguém dá a mínima. Quantas delas serão patrocinadas, de qualquer jeito? Isso não vai prejudicar o torneio. Estão simplesmente negando sua platéia. A platéia do golfe feminino é mais gay do que a do tênis.
Pergunta - Alguma vez você quis ter um emprego diferente?
Navratilova - Acho que eu curtiria ser garçonete. Parece que todas minhas amigas já trabalharam de garçonete em algum momento de suas vidas, para se sustentar.
Também gostaria de ir para o espaço. Teria gostado de ser astronauta. Mas poucos deles conseguem viajar no ônibus espacial.
Pergunta - Você gostaria de morrer lá, no espaço, ou sobre a Lua?
Navratilova - Adoraria. Ficaria apavorada, mas que jeito fantástico de morrer! Se você vai morrer mesmo, essa é a melhor maneira. Muito melhor do que ser atropelada por um caminhão.
Pergunta - Muito tempo atrás eu assisti a você num episódio de "Casal 20", na TV. Você ainda se interessaria por uma carreira de atriz?
Navratilova - Sabe de uma coisa, acho que eu gostaria de ser ator.
Pergunta - Qual o boato mais estranho que você já ouviu a seu próprio respeito?
Navratilova - Que eu estava grávida (ri). E que fui a uma clínica na Itália para fazer inseminação artificial. Foi o médico de lá que iniciou esse boato. Provavelmente só queria publicidade para sua clínica de merda.
Vou acabar processando-o, porque passei os últimos dois anos desmentindo esses boatos. Eles insultam minha integridade pessoal.
Pergunta - Conte-me alguma coisa a seu respeito que as pessoas ficariam surpresas em saber.
Navratilova - Só escovo meus dentes à noite, não de manhã.
Pergunta - É mesmo? Que nojento. Vou me sentar mais longe.
Navratilova - Mas não tenho mau hálito, porque não como merda. Não como carne. Isso faz uma diferença enorme. Minha comida predileta são frutas.
Pergunta - Você sabe cozinhar?
Navratilova - Modéstia à parte, sou uma boa cozinheira.
Pergunta - Como é viver em Aspen, uma estação de esqui?
Navratilova - Aspen é um lugar lindo e tem um clima ótimo, muito sol. Gosto de ficar ao ar livre, é revigorante. Eu esquio e comecei a praticar snowboard. É tão divertido! Outro dia eu estava voltando para casa de carro e vi uma raposa. E este ano, há muitos alces.
Pergunta - Você é fanática por ordem e arrumação? Ou é bagunçada? Tentei dar uma olhada no teu quarto de hotel.
Navratilova - Sou capaz de bagunçar um quarto de hotel em menos tempo do que qualquer pessoa. Em cinco minutos fica parecendo que já estou ali há um mês. Isso é porque eu gosto de ver tudo.
Se eu guardo coisas nas gavetas, esqueço onde estão, por isso eu não guardo nada. Para quê deixar tudo arrumado se você vai embora em dois dias? Em casa sou organizada. Tenho uma governanta que vem uma vez por semana, e só.
Pergunta - Qual a idéia mais errada que as pessoas fazem a seu respeito?
Navratilova - Que eu transo com todo mundo.
Quanto a sair com pessoas: eu não faço isso. Todo relacionamento que eu já tive foi bem documentado, e houve também alguns boatos com Melissa Etheridge e k.d. lang (cantoras). Sempre que sou vista com alguma mulher famosa, começam os boatos de que estou namorando -até com Billie Jean.
Pergunta - Já ouvi essa. Acho que quando eu era mais nova, eu mesma ajudei a espalhar.
Navratilova - Isso me deixa louca, pois não sou promíscua.
Pergunta - Você não acha que isso tem muito a ver com o que as pessoas desejam, secretamente?
Navratilova - No caso dos gays, acho que sim. Na comunidade hetero, eles pensam: "É isso mesmo que esses gays fazem, transam com todo mundo". Eu não.
Pergunta - Duvido que você consiga mudar sua imagem, porque entre as lésbicas você é um símbolo sexual muito forte.
Navratilova - Ótimo. k.d. lang também é, mas mantém sigilo em torno de sua vida particular.
Pergunta - E Madonna?
Navratilova - Provocante. Eu a conheci. Foi muito simpática. Mas não senti nada vindo dela, sabe como? Ela ergue uma muralha à sua volta, e eu não a culpo por isso.
Pergunta - Você não ergue uma muralha. Mas quem a vê falando na TV fica com essa impressão.
Navratilova - Não sou uma pessoa de que é difícil se aproximar.

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