São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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Uma visão brasileira para as relações internacionais

Celso Lafer analisa novo livro de Rubens Ricupero

CELSO LAFER
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Visões do Brasil" reúne parte expressiva dos trabalhos de Rubens Ricupero sobre relações internacionais elaborados entre 1961 e 1994. Têm todos uma limpidez de estilo e de argumentação esclarecedora dos temas tratados. Assinalam-se, na substância, pela presença da história, do Brasil e do mundo, como "formadora de sensibilidade" quanto aos rumos e as tendências -observa Gelson Fonseca Jr., no prefácio.
A sensibilidade histórica explica a maneira pela qual Rubens Ricupero avalia e deslinda o concreto. É a razão metodológica que acabou por torná-lo, na sua geração, o menos "abstrato" e o mais "diplomata" entre os intelectuais do Itamaraty, como igualmente aponta o seu prefaciador. Daí aliás, uma associação harmoniosa entre a capacidade de formular teoricamente e a competência de atuar diplomaticamente, que é um dos traços da personalidade e da vida do autor. Finalmente, está subjacente, nos textos reunidos nesta coletânea, o forte e grave legado do existencialismo cristão.
A primeira seção do livro intitula-se "Visão do Brasil". Esta seção é chave para o entendimento da relação entre o "interno" e o "externo", ou seja, para a compreensão do que Rubens Ricupero considera, com senso crítico, a especificidade do Brasil. Esta discussão é um dos pré-requisitos para a análise da presença brasileira no mundo -o tema recorrente central do seu percurso intelectual, compendiado neste volume, organizado por Sérgio Danese e Marcos Galvão.
Nos ensaios reunidos nesta primeira seção (págs. 27-73), o autor chama a atenção para a independência do Brasil como um processo e não como uma data. Para o entendimento deste processo, sublinha a importância dos sucessivos projetos e de suas vicissitudes, que os brasileiros sonharam para o seu país desde José Bonifácio. Conclui que, para a realização do sonho de um projeto, é necessário construir uma coligação majoritária de forças e vontades. Não há, em síntese, sonhos realizável sem alianças sólidas. Por isso a tarefa democrática dos que querem, como o autor, fazer da justiça em nosso país o valor unificador de um projeto de cidadania passa pela articulação política de apoios efetivos.
Sem estes apoios não existe base sólida para a consistência de políticas públicas, que é parte integrante do lastro interno de coerência indispensável para a boa negociação do tipo de inserção internacional preconizada pelo autor para o Brasil.
A relação entre projeto e apoios no plano da ação diplomática é concretamente discutida neste livro, com base na experiência profissional do autor, por meio de três casos paradigmáticos, que destaco, nos quais teve a oportunidade de formular sugestões e operacionalizar resultados.
O primeiro, no tempo, foi o do Tratado de Cooperação Amazônica, que o jovem diplomata Ricupero levou adiante, na segunda metade da década de 70. De fato, com base no repertório das práticas de ação conjunta de países que compartilham uma bacia hidrográfica, contribuiu ele para dar novo rumo à agenda da diplomacia brasileira com os países vizinhos, por meio da transformação das nossas fronteiras em oportunidades de cooperação. O modelo de cooperação por ele concebido e negociado inovava, em relação ao que se vinha fazendo na área do aproveitamento de bacias hidrográficas. Inovava ao realçar o que representa o desafio amazônico em termos de criação de uma tecnologia de produção e saúde adequada à floresta equatorial; inovava também em função do foco antecipador dado pelo tratado aos problemas de meio ambiente na perspectiva do despertar de uma consciência ecológica (cf. págs. 358-368; págs. 386-396).
O segundo, foi a negociação do capítulo financeiro da Agenda 21, por ocasião da Rio-92 -a grande conferência da ONU sobre meio ambiente e desenvolvimento. Na primorosa reconstituição desta negociação difícil, na qual teve papel decisivo como coordenador do grupo de contato sobre finanças, o autor mostra, ao "parar para pensar" sobre a experiência vivida, como surgiu e se aproveitou um nicho de oportunidades para, no novo contexto da primeira grande conferência multilateral pós-Guerra Fria, pôr em marcha "negociações globais". Estas foram almejadas e reinvindicadas pelos países em desenvolvimento e recusadas pelos industrializados em Cancún no início da década de 80. Ao analisar o construtivo papel que tiveram os países em desenvolvimento nesta negociação, indica o autor como é mais abrangente e sustentável, em termos de uma "visão de futuro" do desenvolvimento, "o consenso do Rio", quando comparado com o exclusivismo do "consenso de Washington" (págs. 130-148).
O terceiro caso diz respeito às negociações da Rodada Uruguai, de que o autor participou ativamente, durante bom período, como Embaixador, Chefe da Missão do Brasil em Genebra (1987-1991). Nas muitas páginas que Ricupero dedica ao tema da inserção brasileira no comércio internacional e a sua importância, em novos termos, para o nosso país, destaco, no que tange ao processo da Rodada Uruguai, a maneira pela qual analisa o como se passou do confronto paralisador para a negociação.
Enumera o autor o leque dos interesses dos países desenvolvidos em tratar e disciplinar, multilateralmente, investimentos, serviços e propriedade intelectual e a aspiração dos países em desenvolvimento em inserir, na temática da Rodada, agricultura em geral e produtos tropicais em especial (sujeitos a escaladas tarifárias), assim como têxteis e confecções. Mostra igualmente a importância, para os países em desenvolvimento, em conter o efeito deletério em matéria de acesso a mercados, representado pela aplicação arbitrária de direitos compensatórios contra subsídios e taxas antidumping calculadas de forma injustificada. A isto se adicionava a espada de Dámocles do unilateralismo das medidas norte-americanas contempladas pela seção 301 de sua legislação comercial. Daí a latente discussão Norte/Sul que permeou a Rodada Uruguai.
O nó górdio foi desatado diplomaticamente por uma nova coligação de forças, facilitado pelas diferenças entre EUA e União Européia e pela presença do Grupo de Cairns, que reuniu países industrializados e em desenvolvimento, unidos pela causa da incorporação da economia agrícola no Gatt. Tudo isto viu-se instigado pelas convergências no sistêmico, vale dizer pela aspiração generalizada em criar um sistema multilateral de comércio, regido por normas, que as realidades da lógica de globalização e o novo clima axiológico trazido pela queda do Muro de Berlim indicavam como o sentido da história (conferir em especial as págs. 251-321).
Esta reflexão do autor, lastreada na sua experiência sobre projetos e alianças na ação diplomática, é a base de sua visão a respeito da política externa brasileira. Diz ele que o Brasil, ao identificar e explorar as condições internacionais que viabilizem o desenvolvimento interno -nosso tema diplomático recorrente desde 1930-, deve, no momento atual, buscar soluções "dentro do sistema e não contra ele, por negociação e persuasão, e não por confronto, dadas as condições adversas de correlação de forças" (pág. 190).
Em síntese, para recorrer à lição dos clássicos, Rubens Ricupero tem, no meu entender, uma visão grociana da inserção do Brasil no mundo. Vale dizer, identifica no sistema internacional, na tradição intelectual que remonta a Grocio, um potencial de sociabilidade que torna possível conceber a política internacional como um "jogo" que não é, inapelavelmente, de "soma-zero". É claro que existe confronto, mas há espaço para a cooperação. É este espaço que cabe ao Brasil explorar nos seus projetos, tendo em vista que a sociedade internacional comporta a interação organizada (e não exclusivamente anárquica à maneira de Hobbes) entre estados e sociedades nacionais. Esta interação exprime-se por meio do direito internacional, da diplomacia e do comércio, num abrangente processo baseado na racionalidade e na funcionalidade da reciprocidade de interesses existentes na vida mundial.
Esta visão grociana de Rubens Ricupero não é uma abstração filosófica ou uma postura ideológica. Baseia-se no fato de que o Brasil, em função de sua geografia e de sua história, não enfrenta problemas maiores de segurança no campo estratégico-militar. Representa uma elaboração de sua experiência de diplomacia multilateral (os três casos acima comentados inserem-se nesta área), que oferece mais campo para tessitura criativa de alianças viabilizadoras de projetos do que a prática usual da diplomacia bilateral.
Fundamenta-se numa análise das realidades do poder, ao seguir o ensinamento de Albert Schweitzer que Ricupero gosta de citar: "Pessimista no conhecimento, otimista na esperança e na ação". É uma análise sem dogmatismos, pluralista na sua abrangência. Tem um foco claro, organizado, como diria Ortega y Gasset, por uma perspectiva dotada da coerência de "razão vital" proveniente de uma visão brasileira das relações internacionais.

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