São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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Tragédias de uma reunião familiar

Edgar Telles Ribeiro lança seu novo romance

MURILO MARCONDES DE MOURA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O desenho mais geral da novela "As Larvas Azuis da Amazônia" é o de uma narrativa que se constrói a partir da fala de quatro personagens no interior de uma mesma família. A reunião dessas quatro pessoas só foi possível pela fatalidade: a mãe (Elizabeth) sofre uma trombose cerebral que precipita o retorno do filho (Daniel) acompanhado da mulher (Débora) para auxiliar o pai (Tomás) naquele momento difícil.
A aproximação entre mãe, pai, filho e nora tem portanto origem trágica, exemplar de um determinismo destruidor que passa a invadir o espaço familiar como uma doença inescapável. Na fala de um dos personagens: uma "casa condenada pela cobiça voraz de entidades invisíveis". Efetivamente, o que representava solidariedade afetiva, transforma-se em dissociação violenta: o caso avassalador entre pai e nora, a ingenuidade de dar pena do filho e a presença dramática da mãe, onisciente, mas incomunicável.
Para adensar a trama inextricável própria das tragédias, há ainda uma série de coincidências ou de intervenções do acaso. Elizabeth assim descreve o surgimento de sua doença: "Uma luz branca que me pegou pela nuca quando eu cozinhava um bolo e me derrubou de repente". É na mesma cozinha, sob o foco de luz da geladeira, onde pela primeira vez se amam sogro e nora. "Naquela madrugada só tínhamos ido beber água", comenta Débora, e Tomás: "Sede! (...) me levantei aquela madrugada com a docilidade de quem obedece a um comando da natureza".
Assim tudo se impõe como necessário, inexorável como "a força de um raio". No desastre de avião (outro signo ominoso), que ocorre logo no início da narrativa, tudo aparece para Tomás "em um único e luminoso instante". Daniel, inventor bem-sucedido de uma teoria das cores, atribui seu poder de criação a fatores mágicos ou a iluminações súbitas. Todos os personagens, portanto, atuam na mesma "frequência", aprisionados por determinações maiores do que eles e quase sempre nefastas.
Essa sintonia entre os personagens imprime à narrativa uma notável coesão, sobretudo se considerarmos que ela é inteiramente montada em fragmentos: nas 28 partes do livro (em apenas cem páginas) nunca há a intervenção de um narrador externo à ação e há sempre a alternância entre as quatro vozes assinaladas. O que em princípio poderia ser demasiado difuso se mostra, ao contrário, profundamente articulado.
Além do mais, esses monólogos que se sucedem são muito breves e sua sintaxe ágil e despojada. A busca da economia de meios aproxima a linguagem da novela da expressão lapidar, e nesse risco da proximidade perigosa da síntese poética fácil o autor quase sempre se sai muito bem. Por essas características, é perfeitamente viável comparar "As Larvas Azuis da Amazônia" com um quarteto de cordas de andamento veloz, em que a voz solo de cada personagem a todo instante pressupõe e dialoga com as demais. É preciso sublinhar a enorme adesão do autor ao universo feminino (ainda mais flagrante no romance "O Criado Mudo"), de maneira que as duas mulheres representam, nesse concerto, as vozes dominantes.
Quando tudo parecia correr rapidamente para um desfecho sombrio, para um "banho de sangue", a novela propõe um estranho e inesperado ponto de inflexão. Uma outra presença -a de uma vidente, que já havia previsto o desastre de avião mencionado, intervém naquele processo invertendo-lhe os sinais. É uma intervenção benfazeja, semelhante em tudo à das fadas madrinhas. Essa mudança de rumos dá o que pensar. De novela que extraía sua força do confronto com o demoníaco, passamos ao universo do conto de fadas em que a positividade deve prevalecer -uma "crônica da casa redimida". Positividade é algo em grande parte ausente da melhor literatura deste século, em que o mal tem se mostrado muito mais favorável e fascinante do que o bem.
Há aqui uma escolha: o autor preferiu a cura à doença, e se isto tem o seu preço, no decréscimo da tensão narrativa, pode ter outros ganhos ou significados que cabe ao leitor avaliar. Ao dar nome ao maligno -"carências compreensíveis"-, a vidente o coloca no plano mais concreto da experiência e, consequentemente, como algo superável. Não se trata de um exorcismo de grandes proporções, mas de algo cotidiano e doméstico (que era aliás a própria dimensão da tragédia que se desenhava). A novela pode ser lida assim como uma variante do freudiano "romance familiar dos neuróticos", em que o "segredo", para retomar a fala de um dos personagens, é "descomplicar".
Nessa operação de transformar o complexo em simples, ou o desencontro trágico em encontro construtivo, há sempre um movimento híbrido entre desenvolvimento e regressão, com inevitáveis e curiosas intersecções, como aquela entre ciência e infância, a meu ver emblemática da novela. A invenção de Daniel foi adaptada a um brinquedo infantil, enquanto o pai, vendedor e fabricante de brinquedos, pôde se dedicar ao velho projeto de escrever um artigo sobre "as larvas azuis da Amazônia".

Lançamento
O livro "As Larvas Azuis da Amazônia" será lançado na quarta-feira, dia 17, a partir das 20h na Livraria Livre (r. Armando Penteado, 44, São Paulo, tel. 011/67-2140), onde também acontecerá o relançamento de "Criado-Mudo" (Editora 34), do mesmo autor.

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