São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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Entre a solidão e a solidariedade

Sociedade contemporânea está sob risco de extinção

TARSO GENRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A fragmentação do mundo atual parece ter atravessado todas as relações. O ressurgimento dos ódios nacionais, a segregação dos imigrantes, a separação física e política dos incluídos em relação aos excluídos que vivem na sociedade informal, os novos desejos insatisfeitos (sociais, ecológicos, culturais, de gênero), o isolamento dos indivíduos nas megalópoles soma-se à impossibilidade de os pobres acionarem as suas demandas numa sociedade global complexa e orientada pela "espontaneidade" do mercado.
Esta situação de desequilíbrio e violência acentua a crise das relações interpessoais e faz explodir, em todas as latitudes, o individualismo desesperado. O efeito é a solidão: a solidão da exclusão, da pobreza, da discriminação, dos privilégios. Sua resposta extrema é o sectarismo, o elitismo, o fanatismo e o terror. A solidão do indivíduo, reverso da solidariedade social e de utopias generosas com força política, passa a ser um pressuposto para o equilíbrio do sistema. O sujeito isolado é sempre menos potente para imprimir outro rumo ao meio e à própria vida pessoal.
O tema da solidão, como fenômeno de massas -como estado de "espírito" de miséria moral e material- com repercussões na política e na vida dos partidos, jamais foi tratado pela teoria democrática e pelo socialismo. O que não deixa de ser estranho porque a democracia e o socialismo só podem construir-se na crítica da solidão. Exigem práticas sociais que chamam os indivíduos para o "público", logo para o espaço onde as relações coletivas e o "outro" adquirem predominância e se tornam necessidades.
A solidão é o estado de uma nova subjetividade coletiva e fundadora de uma vida moral. Esta consciência, alheia aos destinos do outro, tanto emerge das novas formas de produzir e viver na sociedade capitalista "digital-informática", como origina-se da ameaça que provém dos excluídos. Nestes, a solidão é a impotência para enfrentar a "vida prática" tratada pelos Estados por meio das migalhas "compensatórias".
O marxismo, cuja teoria da alienação mantém atualidade -criação de um mundo exterior cada vez mais estranho e hostil a uma racionalidade humanizadora-, desconhece este tema. Talvez apostando na visão mecanicista de que a evolução real do capitalismo de qualquer modo criaria as condições "concretas" para o socialismo. Mas a história registra o contrário: os sujeitos humanos estão cada vez menos dispostos à solidariedade e os vendedores da força de trabalho estão cada vez mais, subjetivamente e materialmente, dispersos pela evolução da sociedade atual. Na produção de bens, na fruição da cultura e do lazer, na captação dos serviços necessários à reprodução da vida.
Neste mundo da "pós-informação" o novo sentimento de espaço e tempo passa a ter uma outra dimensão. "Você pode morar e trabalhar num único local ou em lugares diferentes, (e) o conceito de 'endereço' adquire um novo significado" (1). "Nem todas as comunicações precisam ser imediatas e em tempo real" (2), pois as pessoas podem programar a recepção de mensagens, seja pela imagem, seja pelo som. O próprio conceito de "reunião" como momento de aproximação física e de "diálogo" entre sujeitos (como tempo concentrado de intercâmbio humano) perde o seu antigo significado.
A alienação clássica do produtor em relação ao seu produto torna-se supérflua, comparativamente ao "estranhamento" absoluto e à separação radical entre os próprios parceiros de classe e com mais evidência entre os adversários e inimigos. A política aliena-se cada vez mais das relações humanas tradicionais da modernidade e tende a tornar-se também um jogo virtual. Neste quadro a maioria dos intelectuais desistiu das "utopias" e aquilo que o velho Lukács categorizou como "rendição à objetividade" tornou-se cinismo: "O que era antes angústia parece ter-se tornado piada" (3).
O olhar cínico da maioria dos intelectuais contemporâneos é lembrado por um crítico americano referindo-se a uma das vestais da "pós-modernidade": "Baudrillard parece divertir-se. Ele gosta de observar a liquidação da cultura, e de vivenciar o resgate das profundezas... Ele vai para casa na França e acha-a graciosamente antiquada, um país do século 19. Volta para Los Angeles e sente perversa hilaridade. 'Não há nada que se possa igualar a sobrevoar Los Angeles durante a noite. Somente o inferno de Hieronymous Bosch pode rivalizar com seu efeito diabólico'" (4).
O processo revolucionário da ciência e da técnica nos últimos 30 anos não foi acompanhado por uma nova teoria crítica democrática. Nem por transformações jurídicas e políticas no Estado Moderno, para submetê-lo às determinações do sujeito, "ajudando a vertebração de uma sociedade civil fiscalizatória" (5). É o "cansaço democrático" (6) que afeta a maioria, aprofunda o isolacionismo e tende a exacerbar o desencanto: "O individualismo e o consumismo transferiram para a esfera privada a equação entre interesse e capacidade. É nessa esfera que hoje os indivíduos identificam melhor os seus interesses e as capacidades para lhes dar satisfação. A redução à esfera privada desta equação faz com que muitas das desigualdades e opressões que ocorrem em cada um dos espaços-tempo estruturais sejam invisíveis ou, se visíveis, trivializadas" (7).
A questão da "reinvenção do futuro" (8) é lembrada por uma inscrição numa parede em Buenos Aires: "O futuro já não é o que era" (9). É isso que uma nova teoria democrática e socialista-democrática deve responder para restabelecer a possibilidade de novos tipos de reconhecimento entre os indivíduos que compõem as classes internamente e entre as próprias classes. Só assim os conflitos podem ser politizados e os sujeitos podem eleger alianças, novas formas de organização social e um novo modo de vida. Um modo de vida destinado a socializar os benefícios da terceira revolução científico-tecnológica e superar a ilusão de um progresso infinito, só dedicado à reprodução do capital.
Na sociedade moderna os sujeitos individuais adquiriram uma "titularidade de direitos e uma consciência política" (10) com certa capacidade de exercê-los. Gravaram até mesmo formas de organização social e política que pareciam consolidadas, como a social-democracia. Na pós-modernidade acelera-se a perda da possibilidade até de postulá-los, em face do crescimento da exclusão e da anomia. O surgimento de "novos focos de conflitividade", sem previsão eficaz para respondê-los -desde o direito dos consumidores até as questões ambientais e da imigração- acentuam a individuação das soluções e o niilismo. Tudo explode no crime e na ausência de perspectivas na relação com o Estado.
A consciência política dos integrantes da sociedade incluída afigura-se assim mais elitizada para proteger a vida imediata ameaçada pela sociedade informal. A vida coletiva cada vez mais frágil torna-se um espaço de disputas "privadas" em nome da sobrevivência no cotidiano. É a separação radical do cotidiano e da história que é a geleira do humanismo, a crise da democracia e a gigantesca barreira, moral e cultural, para a idéia do socialismo e da liberdade humana desalienada.
A idéia de uma sociedade democrática a partir do mero exercício da tolerância, como herdamos do Iluminismo (por meio da concessão de "igualdade em direitos") não tem mais vigor político. A tolerância traduz-se na pós-modernidade como indiferença e hoje pode-se dizer que "a democracia exige também uma ética mais fortalecedora do que a tolerância. A tolerância é uma coisa boa, mas é apenas o ponto de partida da democracia, não o seu destino. Na nossa época, a democracia está sendo ameaçada mais seriamente pela indiferença do que pela tolerância ou superstição" (11).
Os elos que nos orientam no cotidiano e estabelecem as identidades capazes de politizar os conflitos são compostos pelos desafios imediatos, quando estes são compreendidos ou intuídos como desafios de uma época. Só os desafios do "dia-a-dia" assumidos como cotidianidade a ser enfrentada com a menor automaticidade possível, ou seja, sentida com a mínima capacidade de escolha entre alternativas é que pode produzir uma história consciente.
A impermeabilidade do Estado atual, a ditadura que o capital financeiro imprime a todas as economias nacionais, a ausência de "centros" de decisão visíveis e o controle elitizado da informação e a consequente uniformização cultural, transformam o cotidiano numa sucessão de movimentos sombrios. A "época", assim, torna-se uma corrida solitária de cada um, insana ou na defesa da sanidade individual, e o homem pós-moderno declina de planejar o futuro. O futuro, com essa percepção, passa a ser o futuro só de uma, não mais da sociedade como contexto histórico capaz de ser criado pela vontade humana.
Criar uma nova identidade política e moral para a esquerda parece ser a tarefa mais importante nos dias que correm. Isso sob pena de que no momento do possível declínio da ideologia neoliberal as velhas respostas se tornem neoconservadoras. Não só porque elas lidam com categorias históricas declinantes, que emergiram de uma sociedade industrial que estimulava a vida pública e baseava-se na produção coletiva organizada fisicamente, como também porque se dirigem para mobilizar classes sociais que sofrem mudanças radicais, inclusive já compostas por indivíduos diversos daqueles engendrados pelo Iluminismo e pela Ilustração.
A reversão é difícil, mas não é impossível. O surgimento de "nichos" de uma nova vida política e moral, às vezes utilizando os mesmos meios tecnológicas que aprimoraram a dominação e "morfinizaram" a exclusão, já podem ser detectados. São as organizações de consumidores, as guerrilhas em defesa de um ambiente natural equilibrado, a luta pela regeneração da solidariedade contra a pobreza, as lutas pelo direito de moradia e pela socialização dos postos de trabalho, bem como os novos mecanismos de controle público não-estatal (para fazer valer "antigos" direitos) que atormentam hoje o cálculo de mármore da utopia de direita: o neoliberalismo.
Parece que a estratégia possível seria gerar movimentos que desafiassem o isolamento, a fragmentação, a solidão da sociedade "digital-informática", propondo uma cultura e uma ação políticas que restabelecessem os laços do cotidiano com a história. Uma atitude neo-iluminista que rejeite a hegemonia da intelectualidade neoliberal, antiga ou aderente, que na verdade sustenta: "Nem memória nem utopia. Presente." (Como afrontou Leonardo Sciascia: querem é o presente como inquisição) (12).
Só as lutas que encaminhem exigências sobre o Estado, a partir dos velhos e principalmente dos novos focos de conflitividade, para mudar o Estado, para controlá-lo a partir da sociedade civil, para disputá-lo com os interesses privatistas, só estas lutas que "unem" os dispersos podem restabelecer este vínculo do cotidiano com a história e novamente comover o imaginário popular. São as lutas que reduzem o potencial exclusivista do corporativismo e propõem uma nova cidadania, transgressora dos limites formais da velha cidadania burguesa e proponente de novas fontes de legitimidade.

NOTAS:
1. Negroponte, Nicholas - "A Vida Digital" - Companhia das Letras, SÃo Paulo, 1995, pág. 146.
2. idem, ibidem, pág. 147.
3. Davis, Mike - "Cidade de Quartzo" - Editorial Scritta, São Paulo, 1990, pág. 62.
4. idem, ibidem, pág. 62.
5. Montalbán, Manuel Vazquez - "Manifesto do Planeta dos Macacos" - Editora Scritta, São Paulo, 1995, p. 30.
6. idem, ibidem, p. 31.
7. Santos, Boaventura de Souza - "Pela Mão de Alice, o Social e o Político na Pós-Modernidade" - Edições Afrontamento, Porto, 1994, p. 276.
8. idem, ibidem, p. 278.
9. idem, ibidem, p. 277.
10. Cerroni, Umberto - "Hacia um Nuevo Pensamiento Politico" - in: "Socialismo, Liberalismo, Socialismo Liberal", Editorial Nueva Sociedad, Caracas, 1993, p. 149.
11. Lasch, Christopher - "A Rebelião das Elites e a Traição da Democracia" - Ediouro, Rio de Janeiro, 1995, p. 107.
12. Montalbán, Manuel V. - op. cit. - p. 28.

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