São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O futuro do samba

HERMANO VIANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não se fabricam mais raízes como antigamente. E não é de hoje que essa fabricação anda complicada. Gilberto Gil, há anos, declarou só gostar de uma raiz: a mandioca. A dupla Deleuze & Guattari tinha um gosto mais radical: da sua dieta filosófica todas as raízes foram cortadas; nela só entravam os rizomas, de preferência a grama. Grama mesmo, essa que todo mundo pisa e não mata.
Pois a grama não tem uma raiz central, como uma árvore. Sua organização é totalmente descentralizada, totalmente anti-hierárquica. Milhares de micro-raízes ligadas em rede (é isso mesmo: como na Internet) ocupam o território de um quintal, de um quarteirão, num movimento de expansão que poderia atingir o mundo inteiro. Não existe imagem melhor que o rizoma para descrever a situação da música contemporânea nesses meados de anos 90. Uma situação em que o metal do Sepultura se encontra com o canto ritual dos xavantes justamente quando o ritmo que domina as pistas de dança se chama Jungle. Que selva musical é essa? A exploração deve ser feita aos poucos, se não o ouvinte corre o risco de se perder para sempre.
Sepultura
Não deixa de ser uma ironia ver o Sepultura -a banda mais internacional (e aparentemente mais desenraizada) que o Brasil já produziu- lançar um disco chamado "Roots", ou "Raízes". Quais são as raízes do Sepultura? A cultura metal de Minas Gerais? Nada disso: a turma dos irmãos Cavalera se embrenhou nos confins do Mato Grosso e foi buscar suas raízes numa aldeia xavante. Parece a repetição da façanha do Policarpo Quaresma, que de tanto querer ser puramente brasileiro começou a aprender tupi, o que no final das contas é muito pouco brasileiro. Mas os integrantes do Sepultura não são personagens póstumos de Lima Barreto. Eles nunca quiseram ser brasileiros, pelo menos não no sentido óbvio que muitas vezes se dá ao "ideal" de brasilidade. Sua música (sacrilégio: é cantada em inglês!) nunca seguiu a cartilha do "cavaquinho, um pandeiro e um tamborim". Então, sua aliança com os xavantes faz sentido. Trata-se do encontro entre tribos inimigas de um ideal de homogeneização nacional que determina que "quem não gosta de samba, bom sujeito não é".
Mas não deixa de ser mais irônico ver surgir, nessas "Raízes" do Sepultura, o pós-bloco-afro de Carlinhos Brown totalmente camuflado sob o projeto gráfico (e de marketing) indígena. Não é nenhuma ironia, é claro: esse é um conceito que não tem lugar no universo do metal. O Sepultura é totalmente sincero, e "Roots" talvez seja seu disco mais empenhado na pregação da sinceridade (em "Cut-Throat", Max Cavalera canta quase como se fosse Renato Russo em sua fase mais virtuosa: "A integridade vai libertar nossas almas").
Então a participação baiana deve fazer todo o sentido nesse contexto pós-enraizado. E faz. Pensando bem, as raízes brasileiras entraram mais uma vez em curto-circuito desde o dia em que Neguinho do Samba, o diretor de bateria do Olodum, inventou o samba-reggae. De repente, o tambor baiano se tornou um instrumento tão pop (e, portanto, avesso à prisão do nacionalismo barato) quanto o toca-discos de Afrika Bambaataa ou de Paul Oakenfold. Se é assim, Carlinhos Brown se encaixa como um "tiro no pandeiro" (vide a faixa "Ambush") no metal do Sepultura, que pode finalmente botar o seu bloco Raízes Internacionais Brasileiras na rua.
Falta gente nesse bloco: o Sepultura poderia ter se adiantado ao próximo Paul Simon e ter gravado logo com o boi-bumbá de Parintins. Aquilo sim é metal. O espetáculo do Bumbódromo, com todo aquele fogo na encenação de mitos de fim-do-mundo indígenas, só tem um paralelo no universo pop: o concerto hipermetálico do Gwar, a banda porno-trash-troglodita-espacial. Nenhuma outra experiência ao vivo chega aos pés da avalanche neomitológica do bumbódromo. Fica a dica, de graça: o Sepultura deve chamar um dos "carnavalescos" adolescentes de Parintins para projetar seu próximo palco.
Mas as semelhanças trash-metal/bumbá não estão apenas no imaginário escatológico. Parintins também resolveu à sua maneira o problema eterno dos brasileiros: a luta entre raízes e antenas. A lição do Olodum foi seguida à risca, mas com muitas inovações amazônicas. A carnavalização do discurso anti-racista foi trocada pela carnavalização do discurso ecológico. E um novo orgulho de ser indígena, de ser "povo da floresta", também entrou na dança do boi. Se em 1986, em Salvador, era possível ver aquela lourinha de Ondina cantando orgulhosa "eu sou negão", agora a lourinha de Manaus pode ir a forra com muito mais radicalidade, gritando, como se não fosse com ela, "eu sou um índio guerreiro, pense nisso seu branco" ("Índio", do bumbá Garantido). Parece "Ambush", do Sepultura, que diz: "a Amazônia queima... Nós vamos colocá-los pra fora dessa terra". Onde anda a famosa cordialidade simbólica dos brasileiros?
O Sepultura poderia também aproveitar alguns refrões dos bumbás de Parintins, que reeditam a língua-geral tupi em versão anos 1990, com eficácia para grandes estádios já testada. Exemplo? É só escutar "Kananciuê", hit do Caprichoso, boi vencedor de 95: Uandiê, Ê Carajá, Sie, Cao-Erá, e assim por diante. O efeito guerreiro, quando essas palavras são cantadas por 20 mil pessoas, é impressionante. Parece que a Amazônia voltou a ser finalmente uma terra de índios. Índios que tocam sintetizador (a grande vedete da última competição dos bumbás) e charangos andinos. Mas índios brasileiros com muito orgulho. Como o Sepultura, composto por índios que tocam guitarras elétricas e que fizeram de "Roots" o melhor disco "genuinamente" brasileiro de 1996.
Na sua busca de uma nova estética da floresta, é difícil saber porque o Sepultura não se aliou ao Jungle (que deveria também se misturar às toadas de boi de Parintins), o mais extremista assalto sonoro da atualidade. Uma união Sepultura/Goldie, por exemplo, seria tão politicamente (e comercialmente) correta como a dobradinha Aerosmith/Run DMC ou Anthrax/Public Enemy. E o Jungle é o terreno mais fértil para a proliferação de raízes contemporâneas, isto é, raízes virtuais absolutamente (ou massivamente, como quer a gíria "selvagem") desenraizadas.
O disco "Timeless", do ex-grafiteiro Goldie (talvez o mais importante lançamento de 1995, mais do que o "Maxinquaye", de Tricky), é a fusão "longe do equilíbrio" do dub jamaicano, das experiências pós-eletroacústicas do Kraftwerk (seguidas pela house e pelo techno/trance), da colagem sonora do hip hop, em resumo, de tudo aquilo que realmente tem futuro na música pop de hoje.
Fusão é a palavra mais diplomática para se falar de uma situação em que as raízes foram multiplicadas ao infinito, e em que as fronteiras entre as tribos são cada vez mais difíceis de determinar. É por isso que surgem todos os tipos de fusões de todos os lados: a "fusion cuisine", a arquitetura pós-pós-moderna, o mix étnico das passarelas da moda. É por isso também que é possível ser lançada em CD, com sucesso mundial retumbante, uma fusão tão inesperada quanto a Xavantes/Sepultura.
Os meninos do Sepultura sabem muito bem em que mundo estão vivendo, um planeta onde a colagem sonora impera. Tanto que até convidaram o DJ Lethal para fazer "scratches" (ruídos provocados pelo DJ ao arranhar os discos com a agulha) na faixa "Lookaway", que por sinal tem um ritmo que por pouco não cai num "breakbeat" jungle. Mas Goldie é mais direto, e sabe que a fusão de hoje só pode ser uma fusão de fusões passadas. Não é a toa que anda fazendo campanha para transformar o Chick Corea do "Return to Forever" em ídolo musical da garotada. Já que é fusão, é bom que tudo vire fusion mesmo. Então os breakbeats de "Timeless" estão cada vez mais Alphonse Mouzon, e o guitarrista convidado estudou Jim Hall com afinco, e uma cantora lembra Anita Baker. Fusion demais? Pode ser. Mas é esse exagero que pode transformar o Jungle (mesmo sendo a música mais "genuinamente" inglesa que o Reino Unido já inventou) na base para o samba-mundial-mutante do século 21.
Samba
Ironia é falar sobre o Sepultura e o samba do futuro quando a obra de Carmen Miranda é lançada em CD (dois anos depois de "Etenhiritipá", o CD dos xavantes, um trabalho do Núcleo de Cultura Indígenas que, apesar da fraca distribuição da Quilombo/Warner, motivou até a ida do Sepultura para a aldeia de Mato Grosso -quem pode prever o que a caixa Carmen Miranda vai desencadear?) Carmen condensa todas as contradições raízes-internacionalismos que o Brasil já teve e terá.
Ela resolveu cantar em inglês antes do Sepultura e sofreu todo tipo de patrulhamento nacionalista por causa disso. A caixa de CDs (EMI-Odeon) contém as dez músicas compostas (a pedido de Carmen) como respostas a seus detratores. As críticas não podiam ser ignoradas, os tempos eram outros, e Carmen queria com todas suas forças ser considerada (e consagrada como) brasileira. Ela dizia: "Olhem para mim e vejam se eu não tenho o Brasil em cada curva do meu corpo".
Seu corpo, todos sabem, tinha pouca coisa de "genuinamente" brasileiro. Carmen era portuguesa, filha de pais portugueses, estava longe de ser uma cabrocha do morro. Mas isso não importa: Carmen adquiriu, ou melhor, conquistou suas raízes e seu corpo de sambista. Em um dos sambas-respostas, "É um quê que a gente tem", ela canta com toda a autoridade: "Ser do samba é um privilégio/ e não se aprende no colégio/ e não é para qualquer um". O samba, que antes era aberto a todo o tipo de fusões musicais, já tinha se transformado em "autêntica" música do morro. Carmen não tinha o menor problema em cantar as belezas do seu morro. Dando um fim à controvérsia, ela desafiava os inimigos: "Eu posso ficar lá americanizada? Eu que nasci com o samba?".
Mas a resposta definitiva veio com uma composição de Dorival Caymmi, que dizia assim: "É dengo que a nega tem/ Tem dengo no remelexo/ Tem dengo no andar também". A nega do dengo era Carmen Miranda. Então, não tem mais discussão. Dorival (que, segundo Gil, também é índio, "desse que anda nu") sempre soube de tudo. Depois de seu dengo, o debate sobre raízes deveria ter sido encerrado. Mas não foi. O Sepultura vem agora e completa o funeral das velhas raízes nacionais. Melhor assim. Todo mundo pode ser neguinho ou neguinha, ou índio guerreiro (com muito dengo) de Parintins. O Sepultura veio nos salvar. Em "Roots Bloody Roots", Max Cavalera grita: "Isto é real". Tudo bem. Já aprendemos a lição. Nunca foi tão divertido ter raízes.

Texto Anterior: A nostalgia das revoluções perdidas
Próximo Texto: As guerrilhas pela "ocultura"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.