São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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A nostalgia das revoluções perdidas

PAUL SINGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há muita saudade, na esquerda, do tempo em que críamos na revolução. Compartilho da saudade, mas não creio que devamos nortear nossas posturas políticas por ela. Dava muito alento e incentivo ao engajamento crer que estávamos lutando por um único evento libertador, decisivo e definitivo. Mudanças políticas levariam a novas regras de condução da vida econômica e social, que produziriam uma nova consciência, a qual guiaria a humanidade a uma sociedade de livres e iguais. A partir daí não haveria mais retrocessos, numa senda linear de progresso etc... etc...
A crença na revolução ainda dispensava a esquerda de encontrar soluções factíveis e coerentes com os seus valores para os problemas concretos que se apresentavam: uma vez feita a revolução, pensávamos, estariam dadas as condições estruturais para resolver todos os problemas.
Esta crença na revolução desapareceu para todos, exceto um pequeno número de fiéis, por boas razões históricas. O século 20 foi sem dúvida o século das revoluções vitoriosas. E grande parte delas deu resultados lamentáveis. As únicas revoluções que valeram a pena foram as que desembocaram em regimes democráticos. Mas, estas, a esquerda tendia a considerar "burguesas". As revoluções que estatizaram meios de produção e instituíram ditaduras monopartidárias, com a pretensão de ter levado a história a seu fim lógico, acabaram sem exceção desperdiçando suas conquistas iniciais pela perpetuação dos mesmos grupos no poder, pelo aniquilamento de qualquer oposição e crítica e finalmente pela corrupção e decadência econômica. Isso já era sabido pelo menos desde a década dos 70, não foi necessário que o Muro de Berlim caísse para revelá-lo a quem tinha interesse em saber.
A questão é o que pôr no lugar da desaparecida crença na revolução. A história sugere que as grandes revoluções econômicas, sociais e culturais levaram décadas e foram resultado de numerosos processos, desde inovações tecnológicas até renovações institucionais, passando por urbanização, industrialização, escolarização, organização sindical e política, massificação dos meios de comunicação etc... O estudo destas revoluções não valida a hipótese de que tenham dependido de tomadas do poder, mas mostra que a luta política contínua e sistemática por mudanças institucionais -desde a limitação da jornada de trabalho até o sufrágio universal- foi essencial para o seu encaminhamento.
O fracasso das revoluções "socialistas" coincidiu com a contra-revolução liberal, que se viabilizou menos pela crise da esperança revolucionária na esquerda do que pela crise real do Estado de bem-estar social, acossado por esclerose burocrática, por autoritarismo na formulação da política econômica e na gestão das empresas públicas e privadas e pela liberação dos fluxos internacionais de produtos e valores. Aqui se encontra o verdadeiro pomo da discórdia. Ao ver de muitos na esquerda, o neoliberalismo só triunfa por causa do colapso do stalinismo, simbolizado pela Queda do Muro. E os que se engajam, por razões inteiramente válidas, na defesa das conquistas históricas do movimento operário em todos países capitalistas democráticos em geral não percebem que as condições que viabilizaram a sobrevida nestas conquistas estão sofrendo rápida erosão quase em toda parte.
O derrotismo na esquerda se alimenta hoje sobretudo do fatalismo dos que intuem a inutilidade da mera resistência ao ataque neoliberal e dos outros que não conseguem superar a perda da fé na revolução. É preciso reconhecer que a força do neoliberalismo vem da veracidade de algumas de suas denúncias, embora isso não torne suas propostas de "reformas" as melhores. A esquerda, que é esquerda por seus valores muito mais do que por seus diagnósticos e prognósticos, tem todas as condições de apresentar outras propostas de "reformas", cuja diretriz só pode ser a substituição de conquistas inviabilizadas por outras novas, sempre em prol dos desprivilegiados e excluídos. O que a esquerda não pode é se acomodar a uma situação em que suas hostes se desgastam em batalhas de antemão perdidas enquanto parcelas importantes de partidários se desencantam da política e se recolhem à passividade.
À medida que a globalização do capital destrói a soberania do Estado-nação, a esquerda perde sua base natural de ação política e mesmo quando conquista o governo, se vê constrangida a praticar a política econômica exigida pelo "mercado". Esquece-se que a globalização foi em parte o resultado deliberado de políticas impostas pelos Estados Unidos, no após guerra, e da recusa das grandes potências a regulamentar politicamente o mercado mundial de capitais. É neste terreno que a esquerda deveria passar à contra-ofensiva. Não se trata de reverter a globalização mas de submetê-la aos desígnios das maiorias no âmbito das nações participantes. O que possivelmente exigirá, como etapa intermediária, a retomada do comando da macroeconomia, dentro de cada nação, pelo governo democraticamente eleito ou, melhor ainda, por uma concertação entre consumidores, empresários e trabalhadores visando reconquistar o pleno emprego nas condições criadas pela Terceira Revolução Industrial.
Em vez de crer na revolução, deveríamos crer na luta política democrática. Mas esta luta só vale a pena se a esquerda deixar de ser uma barreira ao neoliberalismo para se tornar uma alternativa histórica. Para tanto, terá que superar sua ojeriza pelo mercado e pelo individualismo, os quais, dentro de certos limites, devem ser preservados e aperfeiçoados. O verdadeiro desafio está em conceber uma nova utopia, e que a liberdade e a iniciativa individual estejam ao alcance de todos mediante a sistemática integração social dos que a competição pelo acesso à escola e ao comando do capital tende a marginalizar. Pode parecer a quadratura do círculo aos que não se conformam com a perda da fé na revolução. Mas, é uma tarefa tentadora para quem não perdeu a convicção de que podemos e devemos participar na determinação do destino da humanidade.

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