São Paulo, terça-feira, 16 de abril de 1996 |
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A rede vai para o divã
MARIA ERCILIA
Pode também ser um ótimo laboratório de antropologia. É o que sugere "A Vida na Tela" (Life on the Screen, Simon and Schuster, sem tradução para o português), livro da antropóloga americana Sherry Turkle, que se concentra no ambiente dos "chats" (conversas), MUDs (jogos onde os participantes assumem personalidades fantásticas) e games. Turkle fala muito num "limiar" em que uma transformação cultural estaria em curso, permitindo uma "fluidez" da identidade. O travestismo tão comum nos "chats" (as pessoas alternam apelidos masculinos e femininos) é visto por ela como revolucionário. Quem já se enfiou num "chat" madrugada adentro sabe que é mesmo uma experiência meio hipnótica. Ou não. Algumas pessoas se entediam profundamente, outras ficam "viciadas", outras ainda se divertem um pouco e depois largam. Mas o que incomoda na retórica de Turkle é a necessidade de provar que há algo de intrinsecamente novo nisso, um momento de passagem. Tudo se explica quando chegamos à página da professora Sherry Turkle na Web (http://web.mit.edu/www/sturkle), enfeitada com um suspeito e meloso fundo de renda branca. Aí descobrimos um vídeo que ilustra a teoria de Turkle, decalcada em Foucault. Uma imagem do filósofo francês vai se diluindo lentamente e se transformando... num Power Ranger!!! Ironia involuntária: o monstrinho é o melhor símbolo do casamento entre a cultura do entretenimento norte-americana e as retorcidas teorias pós-modernas francesas. Não dá certo... Pelo menos não na moldura simplista do pensamento de Turkle. Sua teoria parece ignorar toda a história da literatura e até a própria psicanálise. A experiência de ler um livro pressupõe tanta dissolução da personalidade e encarnação em diferentes papéis sexuais e sociais quanto qualquer "chat". A suspensão da descrença de que falava Coleridge (1772-1834), poeta e crítico inglês, é um mergulho na alteridade, pré-jargão psicanalítico. O que me lembra uma entrevista dada por Kevin Kelly (editor-executivo da "Wired") à Folha. Apesar de cheio de retórica futurista, fez uma observação notável pela candidez: "Conversando um escritor que odeia computadores, cheguei à conclusão de que o 'cyberspace' é como o lugar onde estamos ao ler um livro". Ora... será que ele nunca tinha lido um? A ansiosa retórica da novidade mascara a transformação que a Internet traz: é de escala, não de essência. Ela multiplica as possibilidades de relacionamento e comunicação, gerando uma teia de relações que seria impossível sem ela. O mundo de que Turkle fala não é a Internet que vai sobreviver. É um mundo de jogo, viciante, escapista. Um ambiente de laboratório, condenado ao underground. Não veremos toda uma sociedade entregue ao "roleplaying" que hipnotiza os estudantes de Turkle. A Internet não é esse mundinho. Ela se metamorfoseou na Web, que se parece mais com uma revista sem fim, com correio eletrônico, que com a máquina de reinvenção da personalidade que a professora americana visualizou. Um ano/Internet é igual a sete anos humanos. Sabe-se lá quem inventou essa conta maluca. Nesse ritmo, quando se fala em momento de passagem, ele já passou... E-mail netvox@folha.com.br Texto Anterior: St. Lawrence toca hoje Próximo Texto: Cineasta expõe limites em novo filme Índice |
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