São Paulo, sexta-feira, 19 de abril de 1996
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"São Paulo S.A." tem atualidade assustadora

CARLOS REICHENBACH
ESPECIAL PARA FOLHA

A ação do tempo talvez seja a única maneira de atestar uma verdadeira obra-prima. Por muitos anos, evitei rever o filme brasileiro que não só marcou a minha adolescência como também a minha opção profissional. "São Paulo Sociedade Anônima" me fez acreditar numa dramaturgia urbana e numa identidade intrínseca com o melhor da literatura paulista - leia-se Antonio Alcântara Machado, Mario de Andrade, João Antonio e Inácio de Loyola Brandão.
O filme de Luis Sergio Person não só apresenta São Paulo como a grande personagem, como, também e sobretudo, detecta a origem da nova classe média nascida à sombra do "boom" da indústria automobilística.
Person trouxe toda a bagagem formal aprendida no Centro Experimentale del Cinema, em Roma, e no contato com ciclos e autores -a "nouvelle vague", o cinema independente americano, o cinema político de Petri e Rossi e de seu mestre, Valerio Zurlini, com cuja carreira inconformista e reconhecimento tardio tanto se identificava.
Para narrar as sequelas do progresso perverso e desordenado que assolou a metrópole de 1957 a 1961, Person lança mão de todos os expedientes do cinema moderno: narrativa fragmentada, cortes secos e abruptos, vozes contrastante em off, elipses, grafismo, alteração proposital do diafragma na mesma cena e a mistura ostensiva do documentário na ficção. Enfim, tudo o que em mãos menos hábeis e de talento homeopático se confundem com maneirismo, afetação ou modismo. Não foram poucos os filmes marcantes de juventude que depois se revelaram medíocres, ou no mínimo, datados.
O maior impacto ao redescobrir "São Paulo Sociedade Anônima" é justamente sua atualidade assustadora, e onde, parafraseando o poeta, o moderno se revela eterno. A classe média nascida à sombra da Anchieta, o novo-riquismo que desponta com a periferia da industrialização avassaladora, é detectada implacavelmente pelo cineasta, com toda sua carga de falso civismo, boçalidade e corrupção, Carlos, o anti-herói e alter ego de Person, é uma peça frágil da engrenagem e, citando Henry Miller, condenado à peste do progresso.
Como analisou o crítico e ensaísta Jean Claude Bernardet, Carlos, em seu fracasso ao tentar se manter à margem do processo, na sua indiferença afetiva e existencial, na abulia de suas atitudes sociais e políticas, tem os braços abertos ao fascismo. Como penitência para sua impotência, o eterno recomeçar, ... Artista e profeta, Person antevê a geração do milagre, o conformismo e o cinismo do Brasil.
Não bastassem as qualidades inventivas de grande cinema, "São Paulo S.A.", é uma obra premonitória em sua busca obsessiva de entender o país e o homem urbano nativo. Como toda a obra-prima seu compromisso é com o aperfeiçoamento humano e a transcendência da arte. Definitivamente, um dos três melhores filmes da história do cinema brasileiro.

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