São Paulo, sexta-feira, 19 de abril de 1996
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Miceli conspira contra retratados de Portinari

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Dois livros com o mesmo assunto acabam de ser publicados pela Companhia das Letras. O primeiro é do sociólogo Sergio Miceli, "Imagens Negociadas": trata-se de uma avaliação crítica dos retratos feitos por Cândido Portinari, nas décadas de 20, 30 e 40. O segundo é o álbum de fotografias "Jardim da Luz", de Bob Wolfenson, retratando pessoas conhecidas do mundo das artes e da sociedade brasileira.
O ponto de partida de Sergio Miceli é dos mais interessantes. Busca fazer uma leitura sociológica dos quadros em que Portinari retratou amigos e personalidades influentes do Brasil da época. O livro vem com muitas reproduções: desde as primeiras obras, quase acadêmicas, em que Portinari pinta pessoas como o poeta Olegário Mariano, até os famosos retratos de Manuel Bandeira e Mário de Andrade; também aparecem, numa veia totalmente oficial, o presidente Getúlio Vargas e alguns medalhões da política.
Longe de serem retratos "inocentes" dessas pessoas, Miceli procura mostrar o quanto Portinari fez de concessão nessas obras. Cada quadro é visto assim como uma espécie de "campo de forças", no qual estão em jogo o prestígio social do retratado, as ligações que este tem com o retratista, as ambições e interesses de Portinari em fixar-se como pintor de destaque etc.
A análise é minuciosa, e apesar de muito detalhada não cansa o leitor. Miceli chama a atenção para os detalhes que, em cada retrato, visam a enaltecer e destacar o valor social dos seus modelos.
Em alguns casos, o estudo é brilhante: como retratar, por exemplo, o moço rico, bonito, de alta estirpe, que acaba de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, e ao mesmo tempo é poeta boêmio, figura romântica e pouquíssimo oficial? Miceli mostra, no retrato de Olegário Mariano feito por Portinari, a cuidada cabeleira, a pose com a mão no bolso, o porte conquistador, harmonizando-se com o fardão da Academia e a oficialidade da cena.
Manuel Bandeira, notório dentuço, é "embelezado" nos dois grandes retratos pintados por Portinari. No fundo de um deles, a paisagem carioca. Mário de Andrade gostava muito da sua imagem tal como foi feita pelo pintor. Ao fundo, numa noite mística, os balões brasileiros, as bandeirolas caipiras de Brodósqui, os horizontes do Brasil.
São, certamente, "imagens negociadas", como diz o título do livro. Mário de Andrade fez campanha em favor da pintura de Portinari; Portinari retratou-o como Poeta com P maiúsculo.
Dito isto, agrego minha desconfiança. Com certeza, o livro de Sergio Miceli nos ensina a ver com mais reservas a arte de Portinari, e a prestar mais atenção na rede de interesses sociais que estava motivando cada um de seus retratos.
Mas... mas acho que não só o autor exagera às vezes, como também desconfio bastante de seu "parti pris". O olhar de Sergio Miceli é malevolente demais. Tudo parece uma conspiração entre o pintor e o modelo.
Há passagens infelizes, a meu ver. Por exemplo. Todos sabemos que Mário de Andrade não era nada rico. Miceli interpreta: "Seu fascínio pelos artistas plásticos e suas obras tinha tanto a ver com seus interesses de ordem propriamente intelectual como com suas veleidades de grandeza social e refinamento mundano." Pior: Mário gostou do retrato de Portinari porque este o pintou com ombros largos, viril, quando se sabe da "ambivalência sexual" do poeta.
Isso não é mais sociologia nem crítica de arte, mas sim especulação maldosa. O que mais incomoda no livro de Sergio Miceli é esse tipo de má-fé segundo a qual todos os personagens envolvidos -Mário, Portinari, Bandeira, Jorge Amado, Graciliano- tem "culpa no cartório".
Portinari retratou Graciliano como um homem torturado. Claro, isso faz parte, segundo Miceli, da iconografia oficial que fez do autor de "Vidas Secas" uma vítima do regime estadonovista. Miceli não se furta a lembrar, perfidamente, que Graciliano Ramos acabou arranjando emprego no mesmo governo que o prendeu.
Ora bolas! Miceli sempre parece estar exigindo posições éticas de artistas esfomeados. Isso não é sociologia, é moralismo. Trata-se de um esforço de pesquisa revelador, mas o que revela é diminuto.
A tese só se sustentaria, a meu ver, se Miceli apontasse a história dos "verdadeiros artistas", dos "verdadeiros escritores" que, recusando-se a participar do jogo, tivessem retratado com exatidão a realidade brasileira... ao passo que esses falsos heróis da identidade nacional -Graciliano Ramos, por exemplo- nada mais fizeram senão construir uma ideologia para a época de Vargas.
Qual o ponto de vista, qual a superioridade de Sergio Miceli nesse esforço crítico? Não parece convincente dizer que é a Ciência Sociológica. Os momentos em que Miceli escreve em sociologuês são os mais fracos do livro, até mesmo porque o sociologuês é uma linguagem fraquíssima mesmo.
Não há ciência, não há rigor explicativo, no livro de Miceli. Há muito boa percepção, muito mais malevolência, muito mais intuição ressentida, muito mais um "antielitismo" fácil (já que elite não somos nós, que publicamos na Companhia das Letras e somos catedráticos da USP), do que sociologia de fato.
Passo ao livro de Bob Wolfenson, que merceria, apesar das críticas acima, uma análise de Sergio Miceli. Pois é a elite brasileira, sem paleta e sem pincéis, que é retratada em "Jardim da Luz".
Ao contrário dos retratistas oficiais de Miceli, Bob Wolfenson optou por captar o puro rosto, sem estantes de livros, balões no ar, sem fundos ideológicos. Isso produz surpresas.
Cada rosto aparece nu. Pêlos, sardas, manchas, adquirem total nitidez. Raros os que ficam bonitos nos retratos de Wolfenson. Mas esse desnudamento facial termina originando um paradoxo.
A cada reatrato fotográfico, o leitor de "Jardim da Luz" reconhece pessoas hiperexpostas aos meios de comunicação. Maria Bethânia, Arnaldo Antunes, Caetano Veloso, Xuxa. Não é mais necessário, como nos tempos de Portinari analisados por Sergio Miceli, mostrar pictoricamente a "espiritualidade" de um poeta, já que todos sabem, de maneira automática e midiática, que João Cabral é poeta; sua foto por Bob Wolfenson não constrói mais nada, pois não há nada a construir.
Publicação das mais ambíguas, portanto, à medida que se dispõe a mostrar como meros rostos, em sua fisicalidade de pintas e sardas, verdadeiros ícones de nossa modernidade brasileira. Imagens negociadas? Até certo ponto, sim; a "deselitização" operada pela pura exposição do rosto pode ser tão ideológica, no fundo, quanto qualquer oficialismo de retratos à moda antiga.

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