São Paulo, segunda-feira, 22 de abril de 1996
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Dançando na boca da garrafa à beira do abismo

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Privacidade era o tema de nossa conversa. Luzes, câmera, debate na TV. Chegamos rápido à pergunta sobre sexo: "Por que as pessoas confessavam tanto seus segredos íntimos? Se Nelson Rodrigues fosse vivo, qual seria sua matéria de escândalo?".
Bem, em três minutos, um pouco de prudência e caldo de galinha. A história do cinema, por exemplo, é um constante revelar. No princípio, as pessoas se beijavam e era muito. Do beijo, cortava-se para a batida das ondas na praia ou nos rochedos. Ritmadas e espumantes, elas contavam o resto da história.
Num determinado momento, as roupas íntimas tombaram no assoalho. Nos anos 50, o mundo começava e terminava nos seios de Martine Carol. Depois, foram sendo mostradas outras partes da criação.
O amor era feito às claras, do princípio ao fim. Um beijo prolongado na boca e a câmera descia com os lábios do amante por toda a extensão do corpo.
No fim das ditaduras, dançou-se "O Último Tango em Paris". Filas quilométricas em Portugal, Espanha, Grécia e Brasil. Todos queriam ver Marlon Brando e Maria Schneider, como se tivessem esperado todos os anos de chumbo por um pouco de manteiga e um casal naquela posição.
Agora no fim do século, quando dizer passou a ser tão importante quanto fazer sexo, que papel teria uma provocação tipo Nelson Rodrigues? Onde ficam a família, os vizinhos, colegas de trabalho, contraponto de repressão e sedução no texto suburbano carioca?
O que diriam os pais de Sharon Stone em "Instinto Selvagem", sabendo que ela abriu as pernas sem calcinha, em pleno interrogatório policial? Nada. Onde estão os vizinhos de Nicolas Cage quando ele decide beber até se arrebentar em Las Vegas?
Neste caso, até que surge um casal de vizinhos, em Las Vegas. Mas como seres de outro planeta, distantes, sem poder de pressão, caricatos.
No momento em que parte para sua decisiva viagem, o personagem de Las Vegas queima o retrato da família, que reaparece apenas como um vestígio psicótico, quando enlouquece num cassino.
Três minutos é muito pouco para falar dessas pessoas e de sua sexualidade porque talvez nem sejam nem elas as que revelam seus segredos em revistas de grande tiragem.
Foucault tem toda uma teoria sobre a moderna tendência ao confessionário sexual. O cinema não pode se afogar em palavras, mas faz a sua parte: cada vez mostra mais e em pouquíssimos anos transformou o "Último Tango" numa brincadeira tão comum, que daria até uma boa campanha preventiva, dessas do Ministério da Saúde.
Acabou o programa. Mergulho numa festa de aniversário. Crianças de 8 a 10 anos dançam em torno da garrafa. As meninas usam botas, barriga de fora, short, camisa amarrada, unhas pintadas de várias cores.
Na sala, encontro uma avó assustada com a vulgaridade. A canção pede: "Vai descendo devagarinho". Elas descem se mexendo e quando se aproximam da garrafa, fazem suaves rodeios. Vemos as fortes contrações, as mesmas da TV.
Disse à avó, que não tinha saída para isso. A máquina educava as meninas assim. Tinha medo de repetir os viajantes que viajavam pela Bahia, há alguns séculos. Todos reclamando de vulgaridade, do cheiro de comida e secreções humanas.
Lembrei-me de um homem que eletrificou seu quintal em Porto Seguro para evitar que os romeiros o invadissem. Os romeiros urinavam nos quintais, rios de urina. Bebiam, cantavam, e com perdão do padroeiro, faziam amor pelos cantos da cidade histórica.
A vida sempre teve esse cheiro forte que horroriza um fino intelectual europeu. O que vem nessa dança de agora é a mensagem milenar. O problema é que, finalmente, conseguiram metê-la dentro de uma garrafa, envolveram numa neutra camada técnica e servem com luzes frias de TV.
Será que comercialmente transformada é mesmo a mensagem de sempre? Estamos dançando na boca da garrafa ou na beira do abismo? Possivelmente em ambos, logo, há pouco dizer, além de "desça bem devagarinho".

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