São Paulo, quinta-feira, 25 de abril de 1996
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1984

OTAVIO FRIAS FILHO

Em 1949, o escritor britânico George Orwell publicou seu último e mais famoso romance, "1984". A sociedade totalitária descrita nessa distopia é tão horripilante que, tendo lido o livro, sobretudo na adolescência, quando somos mais impressionáveis, qualquer pessoa retém para sempre uma atitude de repulsa ao Estado e à política.
Em "1984" o mundo inteiro se tornou comunista. Mas a igualdade é falsa: a maioria das pessoas continua miserável e sobrevive, encharcada de gim, na periferia das cidades. A elite dominante, os membros do Partido, vive sob vigilância constante de um monitor de vídeo, instalado em todo canto, até em cada cômodo de apartamento.
A mentira é a base dessa sociedade a ponto de ter sido criado um idioma -a novilíngua- que permite a comutação binária de termos opostos, de modo que duas afirmações contraditórias podem ser verdade ao mesmo tempo. Não há outro tempo, aliás, exceto o presente; a história é continuamente reescrita para adequar-se ao momento.
Porque o mundo está dividido em três grandes regiões -Eurásia, Lestásia e Oceania- que se combatem. Embora o regime social nas três potências seja idêntico, de tempos em tempos duas delas se aliam contra a terceira, não importa qual, e o adversário de hoje, aliado até ontem, passa a ser o inimigo de sempre.
O romance é a história de como o protagonista, um quadro médio do Partido, descobre essas coisas. Ele então adere a uma dissidência que pratica atos de terrorismo, mas é traído (ou talvez a organização, como as células de "Os Possessos", de Dostoiévski, nunca tenha existido) e termina sendo preso e "reeducado" pelo Partido.
Essa fábula profética, obviamente inspirada no stalinismo, foi desmentida de alto a baixo. O ano de 1984 já passou faz tempo, o comunismo ruiu, vivemos uma era de liberdade e democracia, ditaduras já não conseguem se impor nem mesmo no Paraguai. Respiramos aliviados, talvez porque nos fixemos na literalidade das ameaças de Orwell.
Lestásia, Eurásia e Oceania correspondem, cada vez mais, à China, Europa-Rússia e Estados Unidos. A impressão de diversidade desaparece quando substituímos o Partido pelo mercado, revelando a homogeneidade subjacente. Os países se dissolvem em grandes blocos rivais, mas sua ordem interna tende a um mesmo modelo.
O modelo prefigura um setor que se apropria da riqueza e que se mantém sob disciplina férrea, não mais assegurada pela polícia política, agora dispensável, mas pela eficiência competitiva. Do lado de fora vegeta uma multidão de miseráveis sem futuro, os "excluídos" de hoje, os "proles" da fábula de Orwell, "crack" em vez de gim.
Nem é preciso mencionar o terrorismo. Mesmo a Internet, baseada numa linguagem binária, está sujeita à especulação de que bastaria inverter o sinal para estarmos diante da tela controladora de "1984". Como toda ficção poderosa, ainda que literariamente pobre, o livro de Orwell continua uma metáfora viva, brandindo fantasmas.

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