São Paulo, sábado, 27 de abril de 1996
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Serás um país cruel, disse a fada ao Brasil

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

O brasileiro recusa sistematicamente qualquer sugestão de que tenha o defeito da crueldade. Até que somos magnânimos em matéria de imperfeições. Aceitamos, quase com alegria, a idéia de que somos dispersivos, malandros, de que gostamos mesmo é do Carnaval, de nós mesmos e dos muito próximos, quando não chegam perto demais. Cruéis é o que não somos.
Infelizmente, ai de nós, os massacres em que temos vivido nos deixam sem fala, sem explicações. E, olhando um pouco mais fundo, começamos a desconfiar de que uma ancestral crueldade vive dentro de nós desde que começamos essa empreitada de fundar aqui um país.
Nossa crueldade parece de berço. Nasceu com as capitanias. Os reis distribuíram as terras entre os fidalgos, os homens de bem, como se dizia então. Os homens de posses e de sólida conta bancária, como hoje se diz. O resto, os degredados, os migrantes voluntários da Europa, os índios e caboclos, tinha que ir para a enxada.
Segundo Capistrano de Abreu, em sua "História Colonial", a verdade é que "os donatários tinham alçada no crime até morte natural para escravos, índios, peões e homens livres, para pessoas de mor qualidade até dez anos de degredo". Pronto. Desde aqueles tempos os donatários-fazendeiros podem chamar a polícia para matar os desobedientes.
Durante o militarismo, por exemplo, quem escrevesse coisas desagradáveis contra o governo perdia os direitos políticos. Ou caía no degredo durante dez anos. Temos seguido um programa estrito e grave de crueldade legal.
Um dia perguntei a d. Pedro Casaldáliga, o único santo que conheço pessoalmente, como descreveria ele o ideal do lavrador brasileiro. Um pedaço de terra no chão e umas telhas sobre a cabeça?
Casaldáliga me fitou com aqueles olhos de El Greco em férias na Amazônia e me respondeu que o lavrador brasileiro queria sobretudo sossego. A terra e a telha já começavam a lhe parecer materiais da vida eterna. Sossego.
O sem-terra, como se diz hoje, quer de novo terra e reabriu a luta contra os donatários. Prefere morrer, como morreu Chico Mendes, cujos assassinos continuam em férias.
Já que viu que nosso antigo sistema, que acaba com qualquer método Paulo Freire, é o de manter o lavrador como uma vasta criadagem analfabeta e desassossegada, o sem-terra resolveu arriscar de novo a vida, como em Eldorado de Carajás, como em antigas chacinas, sobre as quais escrevi um montão de reportagens inúteis.
Luta de novo e tenta de novo aprender a ler. Outro dia ele leu no jornal -leu devagar, mas entendeu tudo- que, segundo o presidente Fernando Henrique, o Brasil descobriu uma mina de ouro.
Vocês todos deverão ter lido aquele conto de Machado de Assis chamado "A Causa Secreta", em que Fortunato pega ratos para suspendê-los sobre um pires de espírito de vinho em fogo.
Ele amarra o rato com um barbante e depois corta-lhe as patas, uma a uma, e vai queimando. O conto é extraordinário não por figurar entre as obras-primas do nosso mestre maior, e sim porque, de certa forma, Machado parece ter querido guardar, entre suas jóias finas, aquele brasileiro frio e cruel que nunca mais exporá de forma tão crua.
Bem menos lido, ou quase jamais lido, é o nosso poeta de "Os Cisnes" Júlio Salusse. "Um dia um cisne morrerá por certo./ Quando chegar esse momento incerto,/ em que talvez a água se tisne,/ que o outro cisne, morto de saudade,/ nunca mais cante nem sozinho nade,/ nem nade nunca ao lado de outro cisne."
Esse açucarado poeta escreveu, além de "Os Cisnes", talvez o único soneto do mundo em homenagem a Nero. Só me lembro de ver os soltos: "Às aves do jardim e às pombas mansas voto um ódio satânico e mortal". Ou: "Relembro sempre com prazer sincero as mortes de Agripi e de Lucano".
Finalmente, o fecho de ouro: "Nero, notável pela crueldade, incendiou somente uma cidade. Eu, se pudesse, incendiava o mundo".
Eis o que escreveu o bardo de "A Nevrose Azul", Salusse, dos cisnes crepúsculos. Queria atear fogo ao mundo inteiro, tocando cítara, um Fortunato.
E o que me dizem de "Essa Negra Fulô", o belo poema de Jorge de Lima, da negra que toma conta de sua Sinhá e que aos poucos, meio sem querer, vai tomando conta do coração de Sinhô? Sinhá acusa Fulô de um roubo e faz açoitar a negra. "O Sinhô foi ver a negra/ levar couro do feitor./ A negra tirou a roupa,/ o Sinhô disse: Fulô!"
Sinhá volta à carga e acusa a negra Fulô de outros furtos. Para manter a ordem na fazenda, Sinhô assumiu a punição da escrava. "O Sinhô foi açoitar/ sozinho a negra Fulô./ A negra tirou a saia/ e tirou o cabeção/ de dentro dele pulou/ minha negra Fulô".
A última estrofe é um lamento de Sinhá: "Ó Fulô! Ó Fulô!/ Cadê, cadê teu Sinhô,/ que Nosso Senhor mandou?/ Ah, foi você que roubou,/ foi você, negra Fulô?"
Agora pergunto: o que terá feito Sinhá com a negra Fulô? E como se chamava, de pia de batismo, Sinhá? Fortunata?
Disfarçado em raivosos soluços de Sinhá, nos versos do nerônico poeta dos cisnes ou no massacre do Carandiru, da Candelária, de Corumbiara, do Eldorado de Carajás dia 17 deste mês, a crueldade que se abate sobre o brasileiro pobre é viga mestra da nossa história do Brasil. Outros elementos podem ter variado. Esse não.
O presidente da República que se cuide. Sua produtiva fazenda de Córrego da Ponte, em Buritis, Minas Gerais, a 200 quilômetros de Brasília, está na mira dos sem-terra.
Eles estão, na verdade, querendo ocupar uma certa fazenda Barriguda, que fica a 70 quilômetros de Córrego da Ponte e corre o risco de ser desapropriada.
Mas é bom, pelo sim, pelo não, deslocar para Córrego da Ponte o grosso, digamos, do Exército, para impedir que a polícia arme por ali algum massacre novo. Não há lugar mais impróprio que a quinta do Rei para uma bata como a de Eldorado de Carajás.

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