São Paulo, domingo, 28 de abril de 1996
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As determinações raciais da injustiça

JURANDIR MALERBA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Temas candentes de nosso tempo, relativos às lutas pela supressão das desigualdades sociais, pela democracia, pela ampliação e exercício de Direitos Humanos, requerem atenção e tende a haver uma predisposição à indulgência na recepção de obras que deles tratem. "Cor e Criminalidade" é assim um livro cheio de boas intenções. Talvez seja esse o primeiro erro do autor, a comprometer todo o aparato técnico de que se utilizou para comprovar sua hipótese: a existência de discriminação racial nos julgamentos de crime de sangue no Rio de Janeiro nas três primeiras décadas do século.
A concepção de conhecimento que destila da obra filia-se à noção de ciência da modernidade, segundo a qual a busca do rigor funda-se em números, o que levou o autor a manusear centenas de processos-crime do Primeiro Tribunal do Júri da cidade do Rio de Janeiro. É justo, portanto, comentar o exercício intelectual do autor dentro de sua própria lógica. Em primeiro lugar, toda a arquitetura do livro é construída para comprovar o pressuposto do autor de que havia preconceito racial, e em que medida a prática dos funcionários jurídico-policiais era discriminatória e racista -ou seja, pretende provar o dado de que parte.
No primeiro capítulo observa como as doutrinas das chamadas escolas "clássica" e "positivista" do direito penal eram usadas mais ou menos casuisticamente nos processos para condenação ou absolvição do réu em função da gradação de cor. As posições de ambas variavam segundo diferentes concepções de vontade individual (livre-arbítrio) na imputação da culpa. O segundo funda-se em modelos estatísticos para demonstrar como se manifestava a discriminação racial nos advogados, promotores, juízes e jurados. O terceiro apresenta alguns casos particulares que não obedecem às tendências construídas estatisticamente no capítulo anterior.
O autor manuseou 450 processos-crimes daquela repartição, que representariam 7,5% do total dos julgados no Rio de Janeiro no período, tabulando dados como o tipo de acusação, local, data, bairro, e as "características" dos indivíduos: sexo, idade, cor, nacionalidade, estado civil e instrução. Cruzou esses dados por meio de estimativas de regressão múltipla para chegar à constatação de que as probabilidades de condenação aumentavam se o réu fosse preto, de sexo masculino, pobre, trabalhador manual que tivesse cometido crime contra mulher branca, rica, casada; e o contrário, teria maiores chances de absolvição o profissional liberal, branco, casado que tivesse atentado contra um trabalhador manual, preto, casado -e que essa tendência era válida para 60% dos casos. Dessa descoberta infere que o tribunal considerava os pretos inferiores.
Ora, há aqui um problema técnico e outro lógico. O primeiro assenta no fato de que as probabilidades levantadas pelo autor fundam-se em 4,5% da totalidade presumível dos processos existentes, portanto 1,5% acima da margem do erro estatístico padrão. O segundo é que dos dados infere-se o não-inferível. Daqueles números não é possível deduzir que os funcionários do tribunal julgavam pretos seres inferiores.
O conhecimento do fato de que "acusados pretos têm 38 pontos percentuais a mais de chance de condenação de que acusados brancos" só demonstra que "acusados pretos têm 38 pontos percentuais a mais de chance de condenação de que acusados brancos", e deste fato não pode inferir-se que os jurados tinham preconceito racial. Tinham sim, e essa constatação não exige um livro a demonstrá-la. Essa é uma questão de lógica na construção do argumento central do livro.
Não se trata aqui de problema histórico ou sociológico. Problema histórico (e jurídico) é afirmar-se que vitimar mulheres era, "na visão dos jurados", mais grave do que vitimar homens, por ser uma covardia, o que elevaria as chances de condenação. Ora, crimes contra a mulher eram tidos como situação agravante da pena desde o Código Penal de 1830. Atentar contra a mulher implicava aumento da pena não pelo fato dos jurados acharem ser um crime covarde, mas porque estava assim previsto no próprio Código Penal.
O autor incide nos mesmos equívocos claramente demonstrados na resenha de Joel Rufino dos Santos à obra "Racismo Cordial" (Mais!, 18/fev/96). Nas palavras do historiador, "a cordialidade brasileira está no discurso e não no comportamento". O estudo sobre racismo exige um trabalho qualitativo de interpretação de sua lógica. É ilusão supor que esse tipo de sentimento e de prática se dêem bem com números. Se o autor teve boas intenções na eleição do tema, falhou em sua execução.

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