São Paulo, domingo, 28 de abril de 1996
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Os enigmas de uma superpotência

Opção política da China pode determinar futuro do planeta

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A China será a maior potência econômica do século 21 e, virtualmente, já constitui um dos mercados mais importantes. O futuro do mundo, portanto, depende em grande parte da resposta à pergunta: qual será o futuro da China? O Ocidente responde, com boa vontade, que a modernização econômica acarretará por fim a democratização política, e que a China já está envolvida, de maneira irreversível, na decomposição de seu regime autoritário.
A política de Deng Xiao Ping, Li Peng e outros seria de manter o controle sobre essa morte anunciada do totalitarismo à custa, é claro, de ações repressivas, da manutenção de um sem número de campos de concentração e de uma enorme massa de trabalho servil, permitindo no entanto que a modernização econômica destile seus efeitos, que o espírito de Xangai, de Cantão e de Hong Kong acabem por destronar o de Pequim. Cem milhões de chineses já vivem hoje em dia numa economia de mercado; eles serão duzentos milhões em poucos anos, e, como outro tanto da população vive no campo, assolada pela sociedade comunista, os dirigentes políticos do antigo regime são seduzidos pelas riquezas das províncias costeiras, já que não dispõem de meios para impor sua vontade a uma China camponesa e urbana em decomposição. Na China, como na ex-União Soviética, a burocracia da nomenklatura converte-se facilmente em capitalista, pois seus integrantes já estavam habituados a agir por iniciativa própria num sistema administrativo desorganizado e brutal.
Esse raciocínio talvez seja verdadeiro dentro de um século ou dois, mas é extremamente superficial e até irresponsável no âmbito de uma geração ou mesmo num período de 50 anos. A modernização está ligada à democratização quando duas condições são reunidas: primeiro, que essa modernização venha do interior, o que supõe uma sociedade organizada, provida de conhecimentos técnicos, de bons sistemas administrativos e de capitais; segundo, que tal sociedade seja integrada politicamente, que forme um Estado nacional. A segunda condição não é de todo ausente na China, mas a primeira sim. O desenvolvimento vem de fora, de Hong Kong, do Japão, dos países ocidentais, o que suscita tensões tão grandes que a reação política é naturalmente -somos quase tentados a dizer necessariamente- autoritária.
Como não pensar na Prússia, estribada na economia e sociedade rurais, imune à modernização ocidental dos séculos 17 e 18? A burguesia de Frankfurt foi eliminada pelo autoritário Bismarck, assim como a burguesia de Hong Kong tem boas chances de o ser pelos ditadores de Pequim. A Rússia conheceu uma modernização autoritária sob Stolypin, no início deste século, sem falar da industrialização totalitária levada a cabo mais tarde por Lênin e Stálin. Hoje, em Hong Kong, os grupos financeiros estão decididos a apoiar o regime chinês, mas não para abrir caminho à democracia, e sim para ampliar seu raio de ação e engordar os lucros. Tudo conduz a China a um regime autoritário.
A democratização, evidentemente, não vem nem de cima nem de fora, mas tão-somente de baixo e de dentro. Os sul-coreanos e taiwaneses são prova disso. Foram lutas sociais, por vezes sangrentas, sobretudo na Coréia, nas quais se uniram operários e estudantes, lutas travadas contra a aliança do Estado e das grandes empresas, que puseram fim às ditaduras. Foi a associação de uma consciência nacional nascente e de lutas sindicais e ideológicas que tornou possível converter o crescimento econômico de Taiwan na liberdade das primeiras eleições democráticas em território chinês.
Desde o massacre de Tienanmen e da pena perpétua aos dissidentes, o regime chinês foi capaz de conter a oposição democrática. Esta última só poderá evoluir com o amadurecimento dos conflitos sociais, o que supõe a maturação de uma economia ainda pautada pela lógica do mercado especulativo, e não pelos ditames da sociedade industrial.
Nas próximas décadas, é bem provável que novos países industriais semelhantes à China, como o Vietnã, ou dela bastante diversos, mas localizados na mesma área, como a Indonésia e a Malásia, ou ainda situados em outras regiões do mundo, como o Marrocos, o Peru ou até mesmo o Iraque, se conseguirem romper seu isolamento, associem liberalismo econômico, autoritarismo político e nacionalismo cultural.
Recordemos a situação no início do século. Já se falava então de imperialismo, ou seja, do predomínio do capital financeiro sobre o capital industrial. O domínio do imperialismo desencadeou rupturas revolucionárias ou nacionalistas que abriram caminho aos regimes autoritários. Tenhamos a coragem de deduzir as consequências dessa comparação histórica. O que chamamos de globalização não é o sucesso da Internet nem a difusão de filmes americanos em todo mundo, mas sobretudo a criação de uma economia financeira a um só tempo globalizada e controlada pelos grandes bancos dos Estados Unidos, do Japão e, em menor grau, da União Européia, já que esta é simultaneamente um gigante econômico e um anão político.
O entusiasmo liberal de hoje não prosperará, e veremos a irrupção de reações nacionalistas. Se forem de natureza religiosa, não constituirão grande ameaça, mas podem ser extremamente perigosas se apoiadas pelo autoritarismo de potências econômicas. A ordem, ou melhor, a desordem mundial da atualidade está em via de preparar uma nova geração de regimes totalitários que podem muito bem dominar o planeta, assim como outras forças autoritárias assumiram controle sobre a Europa na primeira metade do século 20. É verdade que a China pode evoluir ao longo de um período de anomia rumo ao enfraquecimento do jugo político sobre a vida econômica e sobretudo sobre o consumo e os modos de vida, mas parece-me mais provável que as enormes tensões causadas por uma modernização parcial e pelo rápido crescimento daquilo que os economistas latino-americanos denominam "heterogeneidade estrutural" suscitará graves reações autoritárias ou, na melhor das hipóteses, a manutenção do atual regime autoritário.
Nossa única esperança é uma evolução do tipo coreano ou taiwanês da China continental, ou seja, a formação de lutas sociais que se convertam rapidamente em lutas democráticas. Mas a tolerância ou até a complacência dos grandes países industriais face a uma China em plena ascensão fazem supor que as chances do regime autoritário são hoje maiores que as da democratização.

Tradução de José Marcos Macedo.

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