São Paulo, segunda-feira, 29 de abril de 1996
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Reforma constitucional não é solução, diz ministro

OLÍMPIO CRUZ NETO
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A reforma da Constituição não pode ser vista como "a panacéia para os males do Brasil" e não será com mudança nas regras que os problemas serão solucionados.
A avaliação é de Marco Aurélio de Mello, 49, ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e autor da polêmica liminar que mandou suspender a tramitação da reforma da Previdência Social atendendo a um pedido da oposição.
Respaldado por juristas, pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), Mello crê que a decisão de suspender a reforma da Previdência será confirmada no plenário do STF.
O julgamento, que será realizado no início de maio, vai dividir o Supremo. "Acho que vai ser necessário um voto de desempate", disse o ministro em entrevista à Folha.
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Folha - Qual a sua avaliação da reforma da Constituição?
Marco Aurélio de Mello - Nós temos uma Carta recente. Essa reforma se mostra indispensável? Eu, como cidadão, almejaria ver a Carta de 1988 praticada e experimentada um pouco mais.
Sete anos são passados, e nós temos muitos dispositivos que não são auto-aplicáveis. Não se chegou à regulamentação prevista. É certo falar que essa é uma Carta prejudicial aos interesses do Brasil, aos interesses do Estado, se ela nem sequer chegou a ser implementada?
Folha - O governo aposta na reforma para sanar deficiências do Estado...
Marco Aurélio - Não nutro essa ilusão. A reforma constitucional não é a panacéia para os males do Brasil. O simples fato de virmos a ter, amanhã ou depois, uma Constituição com parâmetros diversos, não resultará, como se pensa, em solução para os grandes problemas sociais do Brasil.
Não resolverá esse contraste maior que nós temos: a pobreza, o massacre dos sem-terra, a distribuição de rendas perniciosa, com uma concentração enorme e um grande segmento da população na miséria quase que total.
Folha - O advogado Saulo Ramos, em artigo publicado na Folha (dia 16), ironizou sua decisão quanto à reforma da Previdência, afirmando que não havia o "fumus boni iuris" (fumaça do bom direito), mas uma "fumacinha". O sr. esperava uma reação tão grande?
Marco Aurélio - Eu sabia, até mesmo pelo que aconteceu em 1993 (o ministro suspendeu a revisão constitucional em decisão cautelar favorável ao PDT), que uma liminar provocaria uma reação maior por parte de certos segmentos da sociedade e da Câmara.
Mas nós não podemos atuar com peias, preocupados com a repercussão. Quando somos chamados a um pronunciamento, devemos emiti-lo com a maior independência possível. Nós temos de nos acostumar com a metodologia inerente ao Estado Democrático de Direito.
Folha - Qual a explicação técnica para sua decisão?
Marco Aurélio - O dispositivo constitucional (parágrafo 5º do artigo 60) é claro: não se pode reapresentar matéria de projeto de emenda na mesma sessão legislativa. No caso, o substitutivo -de autoria de Euler Ribeiro- foi rejeitado.
Estamos praticamente em maio, com um período em que deputados e senadores terão de dar uma atenção maior às suas bases (eleições municipais). Eu pergunto: por que não aguardar 1997 para reapresentação de um projeto mais discutido?
Folha - O sr. está sendo acusado de interferir no Legislativo.
Marco Aurélio - Quer interferência maior, constitucional e legítima, do que a que ocorre mediante a edição de MPs (medidas provisórias)? (Mais interferência) do que a que ocorre via lei delegada?
O Supremo tem a independência, prevista no artigo 2º da Constituição, levada à graduação maior relativamente à escolha dos próprios membros? Não. Quem escolhe os seus integrantes é o presidente da República, submetidos ao Senado.
Nos crimes de responsabilidade, o Supremo julga os próprios ministros? Não. São julgados pelo Senado Federal. E se houver um julgamento desses não se falará em interferência indevida.
Folha - O sr. acha que o Executivo abusa de MPs?
Marco Aurélio - A medida provisória só pode ser editada na hipótese de urgência e por interesse maior. Hoje, via medida provisória, se disciplina qualquer matéria.
A medida só surte efeito por 30 dias. Depois desse período, ela caduca. Mas o que temos verificado na prática é que se reedita medidas provisórias sucessivamente.
Alega-se que se chegou a esse ponto pela apatia do Congresso, que não preenche o espaço que lhe é próprio. E, aí, um outro Poder acaba atuando em prol de uma política governamental que é sempre momentânea e isolada. Creio que é chegada a hora de se apegar mais ao que diz a Constituição.
Folha - O Congresso está paralisado até o julgamento final do recurso pelo STF. O sr. não acha que isso gera perplexidade?
Marco Aurélio - Estamos vivendo em um Estado Democrático de Direito. Não vejo motivo para o Congresso paralisar os trabalhos.
A liminar concedida se mostrou restrita ao projeto de emenda da reforma da Previdência.
Imagine só, se a suspensão da tramitação de um projeto já tem a repercussão notada no dia de hoje, o que se dirá quanto à suspensão de uma emenda aprovada e promulgada. Aí, meu Deus do céu, o Brasil vem abaixo.
Folha - O sr. não teme que a sua decisão possa vir a fortalecer a tese do controle externo do Poder Judiciário?
Marco Aurélio - Talvez haja uma motivação nesse sentido por parte dos parlamentares. Nós tivemos antes, por exemplo, esse tipo de pronunciamento no caso do senador Humberto Lucena (PMDB-PB) -cassado pela Justiça por uso da gráfica do Senado em 1994, mas beneficiado por uma lei de anistia. Também naquela oportunidade, a decisão não agradou à maioria.
Folha - A tese do controle externo lhe desagrada?
Marco Aurélio - Não. Temos de ver até que ponto a disciplina do Judiciário com a introdução de um controle resulta no cerceio da atividade do juiz, e aí concluir se a alteração é constitucional, tendo em vista o que eu considero uma cláusula pétrea: a independência do Judiciário.
Mas é indispensável que tenhamos realmente um órgão que atue no campo do controle administrativo do Judiciário.
Folha - A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) defende na reforma do Judiciário a criação de uma Corte Constitucional, com o STF incorporando o STJ (Superior Tribunal de Justiça). O que o sr. acha?
Marco Aurélio - Eu não imagino a existência de mais um órgão no país. Penso que deve haver um enxugamento da competência do Supremo.
Eu não vejo por que se manter aqui julgamentos de extradição, habeas corpus contra ato de qualquer tribunal, mandado de segurança contra o TCU (Tribunal de Contas da União), ações penais contra deputados federais.
O Supremo é que deve ser aperfeiçoado para surgir como Corte Constitucional.
Folha - O sr. se considera um ministro com atuação mais independente do que os outros integrantes do STF, por causa dessas decisões polêmicas?
Marco Aurélio - Se polêmico for atuar de acordo com as próprias convicções, com o que eu denomino de espontaneidade maior, eu sou um juiz polêmico.
Folha - O sr. recebeu críticas, mas também elogios por sua decisão. A OAB é favorável à liminar, os advogados Celso Antônio Bandeira de Mello e Ives Gandra também. Isso pode influenciar os outros ministros no julgamento do recurso?
Marco Aurélio - Fiquei de alma lavada com o artigo de Celso Antônio Bandeira de Mello na Folha (publicado dia 18). A comunidade jurídica em geral concorda com essa ótica, segundo a qual a reforma da Previdência não pode prosseguir.
Penso que os pronunciamentos buscam, até certo ponto, esclarecer a opinião pública.
Mas também provocam o estabelecimento de um equilíbrio, evitando que haja uma força única e imbatível a influenciar o plenário do Supremo. A diversidade de enfoques é salutar.
Folha - Não há o risco do sr. ficar isolado nesse julgamento?
Marco Aurélio - Minha visão é de que teremos no plenário uma divisão acentuada e equilibrada. Quem sabe será necessário até um voto de desempate.

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