São Paulo, sexta-feira, 3 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Marinha mercante em busca de rumo

SEVERINO ALMEIDA FILHO

Definitivamente, o Poder Executivo colocou na ordem do dia a regulamentação do transporte aquaviário.
Sua motivação talvez seja pela constatação do déficit no ano passado, na casa dos US$ 17 bilhões em nossas transações correntes, aquelas que, além do balanço de nossas exportações e importações, contabilizam os gastos com pagamentos de serviços ao exterior, como os juros da dívida externa, fretes e seguros.
Considerando que desse total cerca de US$ 4,5 bilhões referem-se ao pagamento de frete para transporte de mercadorias em navios estrangeiros, concluímos que a evasão de divisas nesse item já está no patamar do déficit da nossa balança comercial com o exterior e do pagamento dos juros da dívida externa, ou mesmo os ultrapassa.
Seja qual for o motivo, essa decisão política traz em seu bojo uma notícia boa e outra má.
A primeira refere-se ao despertar do país para uma questão tão relevante para o cotidiano do cidadão.
Estamos pagando muito pelo transporte de nossas mercadorias a outros países e, como se isso fosse pouco, ainda estamos desempregando brasileiros.
Seja porque não mais construímos nossos navios, seja porque não mais os tripulamos.
A má notícia refere-se ao açodamento com que se pretende solucionar a questão.
Todos os que vivenciam o dia-a-dia da marinha mercante e da construção naval sabem das articulações nos corredores do poder no sentido de reeditar a medida provisória, que desde março último, sob o número 1359, promoveu mudança na lei 2404/87, que dispõe sobre o adicional ao frete para renovação da marinha mercante, com alterações que possibilitariam "disfarçar" os navios nacionais de navios estrangeiros para, dessa forma, livrá-los dos efeitos do chamado "custo Brasil".
Em resumo, seria possibilitar que navios brasileiros, mesmo em dívida com o agente financeiro do Fundo de Marinha Mercante (leia-se BNDES), viessem a ser transferidos ou exportados para subsidiária integral de empresa brasileira de navegação e gozassem dos direitos assegurados em lei ao navio brasileiro, desde que satisfizessem algumas exigências impostas pelo agente financeiro.
Curiosamente, ainda se discute dentro do governo a conveniência ou não da utilização de marítimos brasileiros nesses navios. Discussão essa, pela própria natureza, no mínimo esdrúxula.
Ocorre que, muito antes de avançarmos sobre opiniões acerca do acerto ou não do texto da medida provisória, cabe questionar se essa iniciativa é inconstitucional, por agredir o estabelecido na Constituição Federal, que veda a adoção de medida provisória na regulamentação de seus artigos cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada a partir de 1995.
O parágrafo único do artigo 178, aprovado na reforma da Constituição, diz textualmente: "Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e na navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras."
Observa-se que, ao outorgar direitos de bandeira ao navio estrangeiro na forma pretendida e permitir que o mesmo participe do tráfego de cabotagem e navegação interior, estaremos preestabelecendo condições para sua participação nesse tráfego.
Dessa forma, contrariamos nossa Constituição e, em vez de acelerar soluções para soerguimento de nossa marinha mercante, estaremos alimentando novos problemas, com inevitáveis e justas ações de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal.
Chega a ser axiomática a urgência de legislação que viabilize nossa frota mercante.
Há dez anos, os navios brasileiros participavam com 33% dos fretes auferidos. Hoje, mal alcançam 8%, com a agravante de que, excluído o transporte de granel e considerando-se só a carga geral, participam com menos de 3%.
O fórum democrático deve ser, até por imposição constitucional, o Congresso Nacional, onde já tramitam projetos de lei -inclusive um de iniciativa do Poder Executivo- que pretendem regulamentar o transporte aquaviário.
Nele, os atores desse drama, em que não podem ser esquecidos desde trabalhadores do setor até usuários do transporte, devem colocar suas razões e entendimentos.
Deslocar desse cenário os caminhos que devem ser traçados para a nossa marinha mercante é promover soluções paliativas e recheadas de interesses setorizados.
Deixar de promover soluções duradouras para essa atividade, que exige a utilização de elevadíssimos recursos e responde lentamente ao incentivo da legislação, é como navegar em carta mercatoriana acreditando que uma reta é a menor distância entre dois pontos. Nem sempre é.

Texto Anterior: A renda mínima e os erros da Folha
Próximo Texto: China acaba com emprego 'vitalício'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.