São Paulo, sexta-feira, 3 de maio de 1996
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O peixe e o computador

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Criticar o progresso nem sempre é sinal de reacionarismo. São inúmeros os autores que se notabilizaram pela obra de vanguarda, pelo pensamento social mais avançado e, simultaneamente, pelo desprezo aos meios técnicos.
Lembro Eça de Queiroz, que pode ser considerado um socialista fim-de-século e cuja obra, sobretudo "A Cidade e as Serras", é um anátema ao mundo moderno.
Entre as cenas daquele romance há o episódio do peixe suntuoso que seria servido num banquete. O monumental assado subiria por um elevador que ligava a cozinha à sala de jantar. O mecanismo enguiçou com o peixe no meio do caminho. Foi necessário pescá-lo -como os rudes pescadores de Nazaré o fariam, com seus anzóis primitivos e enferrujados.
Por um momento, o progresso, a técnica e a máquina entraram em colapso. O homem precisou apelar para o recurso artesanal e primário que nunca deixou de matar a sua fome.
Pensei nisso ainda há pouco. Vim bater a crônica no meu computador, um 486 que já me garantem ser um equipamento pré-histórico, digno do homem das cavernas, mas que para mim representa o estágio mais sofisticado do gênio humano. Por isso mesmo, é desafio e enigma.
Fiz o que sempre faço, liguei os botões, bati nas teclas que me ensinaram. Nada apareceu na telinha, nem mesmo aquela luz chumbo-azulada, que veio substituir a claridade da criação, quando Deus mandou que a luz fosse feita.
Era noite, não tinha ninguém para me socorrer. Lembrei-me da cena do peixe. Fui nos guardados onde vou colecionando escombros de um mundo que acabou.
Minha velha Remington lá estava, coberta de pó e ressentimento. Fora aposentada por máquinas elétricas e eletrônicas, havia milênios não me servia para nada.
Ela não negou fogo. De certa forma, ajudou a matar minha fome. Aos solavancos, gemendo, conseguiu perdoar o meu desprezo.

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