São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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Aventuras rocambolescas do antepassado das telenovelas

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

"Folhetim, uma História", são 480 páginas de uma relação gostosa de prazer teórico entre sua autora e o tema que há 30 anos ela abordou pela primeira vez.
Há muitas histórias paralelas dos folhetins, no relato de Marlyse Meyer -até 1989, quando se aposentou, professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Eles são o gênero de sucesso comercial por excelência, no decorrer de um século 19 em que a mídia se restringia à imprensa escrita.
São também um produto cultural que o Brasil importava com assiduidade da França e que, pela primeira vez, exprimiu, como "cultura de massa", enredos com sentimentos exacerbados, aventuras repletas de vítimas piedosas e vilões de moralidade ambígua.
Mas são, sobretudo, o que a autora chama de "história em pedaços". Ou seja, o ancestral não muito distante das atuais telenovelas.
*
Folha - Sua pesquisa vai do aparecimento do folhetim na França, no início do século 19, até edições publicadas no Brasil nos anos 40. Qual o parentesco entre toda essa literatura e a telenovela?
Marlyse Meyer - O folhetim, a rigor, não morreu. Ele se metamorfoseou. O folhetim, como o melodrama, trabalha com as grandes emoções humanas. Há um exagero de amplificação dos grandes sentimentos de base, a paixão, a ambição, o medo da morte. O folhetim exprime tudo isso de uma forma "naïve".
Isso também se encontra na telenovela, embora no Brasil ela seja mais sutil, tenha uma construção menos contrastada do que, por exemplo, a novela mexicana.
O folhetim não morreu. Ele é hoje a telenovela. O folhetim sabia contar bem uma história e a telenovela faz o mesmo. Ambos têm narrativas fragmentadas. São as histórias em pedaços.
Folha - Sua pesquisa foi longa, começou em 1966. O que mudou em suas intenções e hipóteses durante todos esses anos?
Meyer - Originariamente, eu me interessava por literatura francesa do século 18. Fiz minha tese de doutorado sobre Marivaux. Mas ainda nos anos 60 eu fui para a Europa. Passei a lecionar na Sorbonne literatura brasileira e quis fazer estudos sobre literatura comparada.
Notei, ao preparar um curso sobre José de Alencar, que o romance brasileiro tinha uma data de nascimento: 1844, com "A Moreninha", de Joaquim Manoel de Macedo.
Mas o que era lido antes? O próprio Alencar dá uma pista. Em família, ele lia quando pequeno traduções do francês, como "Sinclair das Ilhas" (romance inglês de Elizabeth Helme, adaptado para o francês por Isabelle de Montolieu)
Machado de Assis, em "Quincas Borba", também fala em "Sinclair". O mesmo livro é mencionado por Guimarães Rosa. "Sinclair" foi o primeiro livro de ficção lido por Diadorim quando ele chega no Curral dos Padres (em "Grande Sertão: Veredas")
Folha - "Sinclair das Ilhas" foi então a porta de entrada para seu interesse pelo folhetim?
Meyer - Sim, embora o livro remeta a toda uma tradição de obras escritas por professorinhas, governantas e consumidas, na Inglaterra, nos gabinetes de leitura. O folhetim é diferente. Foi idealizado dentro da imprensa popular francesa, como pedaços de ficção publicados diariamente.
Folha - Como se dava a difusão do folhetim francês no Brasil?
Meyer - Ele era traduzido e publicado muito rapidamente. Era coisa de três meses. Em 1938 chegou ao Brasil "O Capitão Paulo", de Alexandre Dumas. Isso levava à aceitação de uma narrativa segmentada, com interrupção e suspense. Com o tempo, qualquer romance passou a ser publicado no Brasil aos pedaços, mas sem a estrutura do romance folhetim.
Folha - Por que os brasileiros apreciavam tanto esse gênero?
Meyer - A resposta não é simples. Em 1983, escrevi um artigo em que afirmava que não entendia essa preferência. Na França, havia uma revolução industrial, Paris uma cidade grande, com os operariado sendo considerados "classe perigosa". No Brasil, ao contrário, estávamos nos tempos da escravidão.
Posteriormente, percebi que as classes de posses tinham no Brasil um medo do escravo parecido com aquele que o burguês francês tinha de seus despossuídos. O escravo era um "objeto" perigoso, que poderia se revoltar, matar.
Essa relação com o medo é fundamental para se entender a identificação das pessoas daquele tempo com a temática folhetinesca, que era de início a aventura de capa e espada e depois passou para a miséria cotidiana -o latrocínio, a sedução etc. Mas minhas respostas não são definitivas.
Folha - Não haveria nisso um maniqueísmo que hoje as telenovelas deixaram de incorporar?
Meyer - O folhetim não era tão maniqueísta quanto parece. Ele acaba, por exemplo, expondo ricos e poderosos como sendo também malvados. A sucessão de folhetins que narravam mulheres e crianças em situação de exploração no trabalho foi inclusive uma das motivações que levou a França a adotar, em 1892, uma legislação específica para impedir nas fábricas a lei do mais forte.
Folha - No Brasil, todos os livros publicados aos pedaços, em jornais, são também folhetins?
Meyer - Eu diria que não. "O Guarani" foi publicado aos pedaços, em 1857. "Quincas Borba", do Machado, também. Não é por isso que eles são folhetinescos, já que o folhetim diz respeito às aventuras delirantes.
Mas em termos de técnica -a necessidade do corte, de uma certa síntese- terá certamente influenciado a feitura do romance.
Folha - Voltando á predisposição cultural: o brasileiro "nasceu" para consumir histórias fragmentadas, narrativas "aos pedaços"?
Meyer - Em verdade, o que havia no século 19 era a oralidade. Esses folhetins eram lidos em voz alta. Imagino alguém da família senhorial na leitura noturna de histórias para os outros brancos e para a escravaria. A fragmentação da narrativa facilita. A interrupção forçada (até o capítulo seguinte) estava nos usos da oralidade.
Folha - Qual a relação entre a oralidade e as novelas de rádio?
Meyer - Uma é a sequência da outra. Não há ruptura nenhuma. Num outro mundo cultural, o nordestino, tem-se a literatura de cordel que era cantada, narrada.
Folha - E qual é o salto entre a radionovela e a telenovela?
Meyer - Creio que foi um salto bem mais técnico, que permitiu contar de outro jeito as histórias dramáticas, folhetinescas, com grandes paixões. Se elas eram ouvidas, passaram a ser vistas, como já ocorria, aliás, com o cinema, que retomou muitos temas do folhetim. Lembremos que "O Conde de Montecristo" foi um dos primeiros filmes.
Folha - Rocambole é o grande personagem do folhetim francês. Como foi a brasileirização desse personagem?
Meyer - Rocambole corresponde à banditização geral do mundo. Foi um personagem extremamente popular, levado no Brasil ao teatro e aos circos. Há por aqui edições tão tardias quanto em 1945 com as aventuras desse herói criado pelo francês Ponson du Terrail e publicadas entre 1857 e 1871.
Ele é uma bela figura do herói malandro, uma grande matriz que se reproduz de tempos em tempos e que recentemente, por aqui, foi materializada no Leonardo Pareja.
Folha - Ele não foi o precursor da telenovela, que, ao fazer sucesso, é espichada ao máximo?
Meyer - Com certeza. O público intervém, solicita mais histórias, sugere desfechos para partes do enredo. Eugene Sue, o primeiro grande escritor francês de folhetins, chegou a ressuscitar um personagem cuja morte deixou seu público inconformado.
Outro detalhe: para que o romance publicado aos pedaços ao longo dos meses ou de anos faça realmente sentido, é preciso que, a uma trama principal, outras tramas cresçam e se agreguem, justamente como ocorre com a telenovela.
Os jornais podiam mensurar diariamente sua audiência, que era o número de exemplares vendidos. Tanto na imprensa do século 19 quanto na televisão de hoje, é evidente que isso se produz sob um pano de fundo em que está em jogo muito dinheiro. A TV, como se vê, inventou muito pouco.
Folha - A sra. assinala que por volta de 1830 não havia uma distinção entre grande literatura e literatura popular ou folhetinesca.
Meyer - É verdade. No início, essa separação inexistia. Balzac chegou a ser considerado um mau literato e um bom folhetinista. Mas, com o passar dos anos, ele não conseguiu se enquadrar nas formas do folhetim.
Folha - E como se destilou essa questão do que era bom no Brasil?
Meyer - Se os critérios na França não eram ainda muito rígidos, o mesmo valia logicamente para o Brasil. De certo modo, considerava-se como boa literatura tudo aquilo que fazia sucesso na França, fosse folhetim ou fosse "grande literatura". Coleções de grandes romances editadas no Brasil trazem "Sinclair das Ilhas".
Folha - E entre os brasileiros?
Meyer - Muitos tentaram fazer folhetim nos moldes franceses, mas não conseguiram. A grande exceção é a do pernambucano Carneiro Vilella. Um escritor como Aluísio de Azevedo escreveu como folhetim "A Girândola dos Amores", que ele mesmo não considera um grande livro.
Folha - A França recuperou para o folhetim personagens medievais, como Roberto do Diabo. No Brasil, ocorreu algo parecido em termos de ancestralidade, com a cultura negra ou a cultura indígena?
Meyer - Há um indianismo que todos conhecemos no romantismo. Já o africano é desprezado, é ele quem também cataliza o medo.

A OBRA
Folhetim, uma História
Marlyse Meyer. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 72, SP, CEP 04532-002, tel. 011/866-0801). 480 págs. R$ 38,00.

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