São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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As razões do desespero

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Numa passagem de seu "Diário", André Gide diz que detestava sair à rua porque tinha o péssimo hábito de ser gentil com as pessoas. A frase do autor de "Os Moedeiros Falsos" (1925), uma das obras-primas do século, vem a calhar agora, quando a Companhia das Letras lança outra obra excepcional -"O Náufrago" (Der Untergeher, 1983), romance do escritor austríaco Thomas Bernhard, nascido em 1931 e morto em 1989.
Pouquíssimo lido no Brasil (dele só temos traduzidos, além deste lançamento, "Árvores Abatidas", de 1984, e "O Sobrinho de Wittgenstein", de 1982, ambos pela Rocco), autor de uma vasta obra, entre romances, um ciclo autobiográfico, contos, poemas e peças teatrais, Bernhard talvez seja o maior nome da literatura desde Samuel Beckett, de quem não é propriamente discípulo, mas certamente o herdeiro legítimo.
Ninguém depois de Beckett levou tão a sério o Adorno das "Minima Moralia", segundo quem "a própria sociabilidade já é participação na injustiça, na medida em que finge ser este mundo morto um mundo no qual ainda podemos conversar uns com os outros, e a palavra solta, sociável, contribui para perpetuar o silêncio, na medida em que as concessões feitas ao interlocutor o humilham de novo na pessoa que fala".
Coube a Beckett, de onde parece sair a fúria de Bernhard, levar às últimas consequências a tendência reflexiva da literatura moderna, na qual a unidade e o sentido da obra passam a depender da intenção subjetiva do autor e não mais, como ocorre em Flaubert, da mera representação de uma matéria previamente autodelimitada (personagens e mundo ainda significativos, não massificados).
Nesse esforço de devolver à literatura sua capacidade de exprimir o mundo, de retirá-la da sua irrelevância, "dada a desproporção entre o que pode dizer e o peso inexprimível do horror que ainda a ameaça" (Adorno, novamente), foi Beckett quem radicalizou o elemento autofágico da linguagem, que, ao se auto-aniquilar, põe por isso mesmo o dedo na ferida.
Os personagens de Beckett não são mais indivíduos, mas antes seres mutilados, debatendo-se continuamente entre a experiência da degradação fisiológica e espasmos de lucidez. Da história só temos o produto -ou resíduo- final, o declínio, o instante do tormento.
A linguagem, sempre circular, numa espécie de eterno presente, parece reproduzir, em sua volta sobre si mesma, a privação de sentido de um mundo que se tornou monstruoso demais para ser compreendido. Eis o legado de Beckett à posteridade, a quem Malone, um de seus mais ilustres personagens, desejava "uma vida atroz, depois os fogos e gelos do inferno e um nome honrado entre as execráveis gerações que virão".
É destes destroços, dessa terra arrasada que parece inviabilizar qualquer esforço literário sério, que parte Bernhard. O mesmo impulso de lesa-sociabilidade, o mesmo exílio auto-impingido que anima um reaparece no outro. Mas, ao contrário de Beckett, Bernhard instala seu "sujeito mutilado" bem dentro do mundo, recoloca-o no tempo e no espaço, dá nome aos bois, situa exaustivamente a miséria humana a partir de sua experiência mais imediata. Há um fiapo tênue separando ficção e realidade em sua prosa desesperada.
É nesse sentido que seus livros vão escarnecer do provincianismo intelectual austríaco e de seus personagens sempre repulsivos, abjetos, insuportáveis. "O Náufrago" alia a essa aversão pelo país natal outro traço recorrente na obra de Bernhard: o ponto de partida é a morte do personagem central.
Ao longo do livro, o narrador fictício busca "salvar" sua vida, numa espécie de catarse, por meio do relato da morte de um amigo, o pianista Wertheimer, que tem sua existência arruinada ainda na juventude, quando ambos ouvem pela primeira vez, em 1953, a interpretação que Glenn Gould (1932-1982) -que logo a seguir se transformaria num dos maiores pianistas do século- faz das "Variações Goldberg", de Bach.
Eram os três estudantes do Mozarteum, em Salzburgo, e ao ouvir Gould tocar os dois se vêem subitamente aniquilados pela nítida sensação de que nunca alcançariam a perfeição do colega genial. Único sobrevivente do trio, ele volta à Áustria 28 anos depois daquele ano fatídico para o enterro de Wertheimer, que se enforca numa árvore em frente à casa da irmã. Num ritmo compulsivo e exasperado, a prosa de Bernhard vai desentranhando as razões daquele suicídio calculado.
Wertheimer, diz o narrador, "sempre leu livros que tratavam de suicidas, doenças e mortes, pensei... livros descrevendo a miséria humana, a falta de saída, a falta de sentido, a inutilidade, livros onde tudo é sempre devastador e mortal. Por isso amava acima de tudo Dostoiévski e todos os seus sucessores".
Como sempre em Bernhard, tudo em "O Náufrago" é extremo, limítrofe, sem saída. Ao lê-lo, ficamos, como Drummond, a nos perguntar: "Do que restou, como compor um homem e tudo o que ele implica de suave, de concordâncias vegetais, murmúrios, de riso, entrega, amor e piedade?".

A OBRA
O Náugrafo
Thomas Bernhard. Tradução de Sérgio Tellaroli. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 72, SP, CEP 04532-002, tel. 011/866-0801). 240 págs. Preço ainda não-definido.

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