São Paulo, segunda-feira, 6 de maio de 1996
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Assunto pessoal: as mãos

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Não é que a minha vida esteja interessante. A vida pública está tão chinfrim (a novidade foram as críticas do Betinho e do Renato Aragão ao programa social de Dona Ruth Cardoso), que decidi tratar de mim mesmo. No sábado, aproveitando a praia incerta, peguei o carro e fui visitar o túmulo de Mila.
No caminho, comprei umas violetas num vasinho que parecia com a tijelinha na qual ela gostava de beber água de coco. Como o Dom Casmurro do Machado de Assis, Mila tinha fumos fidalgos, quando ia ao Arpoador não bebia a água plebéia dos outros, preferia água de coco, que durante algum tempo foi a âncora do nosso câmbio. Custava sempre um dólar quando o dólar estava a quase três mil cruzeiros. Hoje, custa um real e meio - forneço essa pesquisa aos economistas do governo.
O embaixador Roberto Campos também frequenta a mesma praia, toma água de coco, só que com um canudinho vagabundo de plástico. Mila exigia a sua cumbuquinha de louça, comprada num antiquário da Via del Corso, em Roma. Era, em todos os sentidos, uma dama, uma lady, uma Queen of Sheba. O citado embaixador, que não gosta de cães, um dia dignou-se a observar: - Ela é mesmo muito bonita!
Pois o vaso com as violetas tinha a mesma forma. As flores, muito roxas e agarradinhas, formavam um buquê pequenino. Coloquei-as sobre o túmulo de granito cor-de-rosa que mandei fazer para ela, no qual gravei a dedicatória do meu último livro: À mais que amada".
A poeira de um ano esmaeceu as letras, estavam quase apagadas. Ia limpá-las com o lenço mas preferi usar as mãos. Mila gostava delas, exigia a toda hora que eu as passasse em sua cabeça. Quando eu chegava da faina diária, ela só ficava quieta depois que lhes sentia o cheiro e o calor. Mãos que ficaram inúteis, há um ano. E de repente encontraram novamente o que fazer.

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