São Paulo, terça-feira, 7 de maio de 1996
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Tecnologia e sentimentos, todos fora do lugar

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Navegar é preciso, viver não é preciso. Com leve estremecimento de susto aplica-se o antigo verso do poeta Fernando Pessoa ao sistema de informação, pesquisa e correspondência por computador, a comunicação on line, a Internet.
Usa-se o verbo "navegar" para tratar do novíssimo -para a maioria de nós, brasileiros atrasados- ato de apertar botões de computador que vão abrindo infinitas janelas (as "windows") de informação e comunicação mundo afora.
Não é à toa que a imagem que introduz a tela da Internet é o símbolo de um leme de navio (chamado "Netscape Navigator"). Todo o vocabulário naútico, a rede (net), o navegador (navigator), a pirataria, toda essa metáfora do mar é mesmo porque o indivíduo mergulha naquelas ondas -como uma caravela portuguesa de 1500- e fica ali singrando águas, buscando descobrir mundos nunca dantes por ele percorridos.
E porque tudo se opera no silêncio e na escuridão do alto-mar: eu não te vejo, tu não me vês. Por isso mesmo, o universo on line é próprio para covardes, para travestidos de toda ordem. Ninguém precisa mais se identificar para entrar em comunicação com o outro, os nomes são fictícios, os endereços são códigos entre barras.
É fácil sentir-se ultrapassado, obsoleto e grosso diante de tanta sofisticação. Há toda uma delicadeza de miniatura e de brinquedo nos símbolos do universo on line, nas janelas de retângulos perfeitos que encerram outros retângulos perfeitos, nos clicks precisos, nos traços finos, nas pequenas chispas de luzes, nos pipocos ínfimos, nas imagens que se estampam aos poucos na tela.
É fácil sentir-se um velho caminhão à manivela. Nem parece que uma coisa touro, uma coisa tronco como um ser humano inventou tal universo de delicadezas. Enfim o homem virou máquina obsoleta: seu coração de trator, seu pâncreas de caminhão, seu fígado ensanguentado, seu cocô.
Até mesmo o cérebro -a sede da inteligência, o orgulho da espécie- não passa de um armazém de quinquilharias, paquiderme lento em comparação com a agilidade de processamento infinitamente maior do sistema on line, da presteza dos seus bits.
Sentimentos? Quem é que falou em sentimentos? Quem é o bobo da corte? Quem é que sente o quê, por quem? Ora, a comunicação on line, a realidade virtual, é fundada no princípio mesmo da universalidade: é a visão do todo, da grandeza e vastidão cósmica, oposta à limitação míope e mesquinha e a valores parciais ou a interesses particulares. Sentimentos são coisa obsoleta, porque todos mesquinhos.
Para uma pessoa que não se comunica, ou se comunica muito pouco, é quase um insulto essa onda comunicadora que transforma a palpável realidade em virtualidade.
O homem nunca foi tão Deus como agora que criou um universo infinito. Mas como ele é máquina obsoleta, consequentemente Deus está obsoleto. No universo sem centro e sem governo da comunicação on line, o centro sou, enfim, eu.

E-mail mfelinto@folha.com.br

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