São Paulo, terça-feira, 7 de maio de 1996
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Eldorado

LUÍS PAULO ROSENBERG

Há um paradoxo no ar: o governo Fernando Henrique está sendo estigmatizado como o de menor consciência social dentre os que já assumiram o poder pelo voto direto.
Realmente, causa perplexidade ver acusado de omisso em relação à pobreza um dos intelectuais mais respeitados que a esquerda brasileira foi capaz de produzir.
Eleito em primeiro turno, tocando um programa de governo que conta com mais de 90% de apoio nas camadas de baixa renda, FHC conseguiu fazer crescer o consumo de alimentos em mais de 30% só no ano passado, talvez o fato redistribuidor de renda mais notável das últimas décadas.
Mesmo assim, sua queda na imprensa, nos últimos meses, foi vertiginosa: de depositário universal das esperanças de construção de um país justo e moderno (a salvo das críticas, por mais primários que fossem seus erros), o presidente passou a Geni de plantão, não escapando de críticas nem sequer de seus correligionários.
Destaques para as espinafrações recentemente recebidas de sem-terra, Betinho, Renato Aragão, Conferência dos Bispos, ONGs a favor do aborto e quase todas as lideranças sindicais.
Por quê?
Em primeiro lugar, vamos separar os ataques inevitáveis dos justificáveis.
Dentre os primeiros, não há por que se espantar quando se forma um coral de críticas tendo Lula como regente, Maluf como tenor, Itamar como baixo, Sarney de contralto e o barítono Collor.
Quem está na chuva é para se queimar, sublinhava nosso saudoso presidente Vicente Matheus: ao desfraldar prematuramente a bandeira da reeleição, o presidente colocou-se como a bola da vez no jogo sucessório. Mexeu no vespeiro, vai ser ferroado até as eleições.
Ademais, não nos devemos abalar com as críticas vindas do FMI, Banco Mundial e "brasilianistas" em geral. Basta olhar a margem de acerto das projeções deles no passado: zero.
De fato, o Brasil é de uma peculiaridade tão rica, é um cipoal tão difícil de desenredar mesmo para quem está dentro dele -que dirá para um observador bissexto que procura transplantar para cá, sem tropicalização, a experiência alemã, por exemplo?
O desencanto político justificável decorre da incapacidade de fazer avançar as reformas que Fernando Henrique tanto defendeu em campanha.
Mesmo dando-se um desconto pela anarquia inercializante que prevalece no Congresso, esperava-se mais do ex-senador habilidoso quando chegasse à Presidência.
O desencanto técnico justificável resulta da falta de coesão na condução da política econômica. No governo Itamar, Fernando Henrique era o dono da economia.
Temendo ser seu poder esvaziado como o de Itamar, procurou, no seu governo, manter o comando da economia na Presidência; para isso, estimulou e alcovitou o confronto aberto entre seus ministros, reservando-se o poder de arbitrar.
Entretanto, enquanto o pau come solto no exército de Brancaleone que foi virando o seu governo, os verdadeiros autores do plano abandonavam a nau dos insensatos.
Os poucos que sobraram optaram por salvar o Real a qualquer preço, mesmo que, para tanto, tenham que exterminar a espécie dos pequenos empresários, "proerizar" metade dos bancos nacionais e trilhar territórios jamais explorados na produção de desemprego preventivo: por mais leviana que seja a Seplan em acomodar déficit fiscal, haverá sempre uma combinação de valorização do real e prática de juros reais escorchantes que impedirá o repique inflacionário. Por muito, muito tempo.
Assim, em vez de comandante-supremo da economia, o presidente foi rebaixado a "globetrotter" do Itamaraty e ensalivador das bases de sustentação de seu governo.
Os benefícios da estabilização são tantos que, no curto prazo, o apoio popular sobrevive à pilotagem impiedosamente sádica da política econômica.
Com o tempo, entretanto, as contradições afloram, a revolta cresce e a bandeira sagrada da estabilidade dos preços acabará destroçada pelo motim decorrente dos exageros e da alienação dos que a empunham.
É no que dá quando quem deveria ser o rei de Camelot é reduzido a camelô: parte em busca do Eldorado de Ponce de León, atraca no Eldorado de Pantoja.

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