São Paulo, quarta-feira, 8 de maio de 1996
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Bernardet exorciza Aids e suas metáforas

MARCELO REZENDE
DA REDAÇÃO

No balanço final do século, a literatura dos últimos dez anos talvez seja lembrada por ter transformado uma doença fatal, a AIDS, em um tema.
Assim foi nos escritos do americano Harold Brodkey e do francês Hervé Guibert. E assim é com o escritor (e professor de cinema) franco-brasileiro Jean-Claude Bernardet, em "A Doença, uma Experiência".
A experiência de que nos fala Bernardet, em um violento livro de 68 páginas, que chega às livrarias no dia 16, é o exercício do desaparecimento.
Seu tema é o da morte incomum, que tem como peculiaridade o aviso prévio, forçando o condenado ao cotidiano da espera, à cilada das filas de hospital, corredores assépticos ou enterros dos amigos e amantes.
O pequeno romance se inicia com a tentativa de uma explicação: "Ele me perguntaria, como tinha perguntado o outro médico, quando ocorrera a contaminação; todos perguntavam, pergunta de praxe".
Essa é a questão que acompanhará seu personagem durante toda a narrativa e desdobrará a pergunta que sempre lhe fazem: "Por que tudo aconteceu?"
Aos poucos a crise se estabelece. A doença implica no cansaço, em uma certa burocracia da sobrevivência. Uma luta que aos olhos de Bernardet não serve como metáfora, pois a convivência com a doença é algo particular.
Nada se explica ou se transfere porque o vírus não altera apenas o corpo. Constrói um novo raciocínio sobre o mundo: "Considerar a ironia como um valor acima de qualquer outro. Mas tomar isso ironicamente, isto é, considerar que a grande força de renovação deste mundo é o fundamentalismo sob suas diferentes formas. Considerar que as Testemunhas de Jeová que recusaram que seu filho recebesse uma transfusão de sangue e preferiram deixá-lo morrer".
Iminência do fim
A trama criada pelo autor sobrevive não por se tornar- em um primeiro momento- um ato confessional, um ajuste de contas em campo aberto. O tema é também o da possibilidade da criação e do desejo, na iminência do fim.
Em dias de anormalidade resta ainda a arte, que não serve como ajuste e conforto, mas é capaz de criar em seu personagem- um homem que escreve um livro e finaliza um filme- a idéia de exaltação ao que resta para ser vivido.
Como Bernardet escreve: "Estou em 'Stand By', não entendo porque estou vivo, me sinto um super-herói, evitar as ilusões, sentir-se um super-herói é infantil, tenho consciência, mas ajuda. O que chegará primeiro: a doença oportunista ou o novo remédio... Recebo um telegrama de Jean-François. A celebração da vida pela aceitação da morte. De resto, podem cremar meu cadáver ou enterrá-lo num caixão, à sua escolha".

Livro:"A Doença, uma Experiência"
Lançamento: Companhia das Letras (tel. 011 866-0801)
Preço: não definido

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