São Paulo, sexta-feira, 10 de maio de 1996
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Uma modernidade tardia

ANNATERESA FABRIS

se as publicações sobre arte têm ganho um espaço maior no mercado editorial brasileiro, o fenômeno investe sobretudo a esfera das técnicas tradicionais, haja visto os nove anos de espera a que foi submetido "A Fotografia Moderna no Brasil". Fruto de uma pesquisa alentada realizada por Helouise Costa e Renato Rodrigues ao longo de 1985-1986, graças a uma bolsa da FUNARTE, este estudo pioneiro permite mapear o surgimento da noção moderna de fotografia entre nós, a partir sobretudo das contribuições da chamada Escola Paulista nas décadas de 40 e 50.
O leitor não familiarizado com a história da imagem técnica no Brasil poderá talvez estranhar o caráter tardio da modernidade fotográfica, mas a análise realizada no livro não deixa dúvidas quanto à datação proposta. Partindo do pressuposto de que a fotografia moderna se caracteriza "pela pesquisa de autonomia formal e, consequentemente, pela negação da importância decisiva do referente" (pág. 38), os autores não colocam, acertadamente, o primeiro momento fotoclubista nacional sob a égide da modernidade. Isso não significa, no entanto, que a contribuição pictorialista, eixo daquela prática, não seja vista de maneira dialética. "Eclipse na história da fotografia, na medida em que tenta adaptar ao meio as concepções clássicas de arte que lhe são totalmente antagônicas" (pág. 39), o pictorialismo proporciona ao mesmo tempo uma prática experimental que irá problematizar a visão corrente da fotografia e conferir-lhe o estatuto de obra de arte.
A definição de uma estética fotográfica moderna no Brasil é resultado de uma série de pesquisas individuais, nem todas concomitantes, que levam à configuração de um "novo olhar". Crítica ao pictorialismo, a trajetória da fotografia moderna no Brasil é analisada em três momentos fundamentais: as contribuições dos pioneiros, a constituição da Escola Paulista e a diluição dos pressupostos inovadores. Em todos eles, Helouise Costa e Renato Rodrigues utilizam uma metodologia de análise bastante precisa, que os leva a apresentar um quadro geral das questões a serem abordadas e a propor em seguida uma leitura plástica de imagens paradigmáticas.
O empreendimento dos pioneiros e da Escola Paulista, centralizado na experiência do Foto Cine Clube Bandeirante, é uma tomada de posição contra a visão homológica da imagem técnica. A ele os autores contrapõem, na análise do terceiro momento, as inter-relações que se estabelecem com a prática fotojornalística, fonte de um novo figurativismo, que, contudo, não se esgota em si. Como mostra a análise do trabalho de Ivo Ferreira da Silva, a retomada do figurativismo e a adoção de padrões compositivos não tão rigidamente geométricos fazem surgir uma "visão direta, sem verniz, na qual a fotografia é definida no próprio ato fotográfico" (pág. 76).
Na definição de uma modernidade peculiar, não poderia faltar um capítulo dedicado ao fotojornalismo, no qual a especificidade do caso brasileiro é oportunamente sublinhada. Se, na Europa e nos Estados Unidos, a fotografia de imprensa lança mão das propostas modernistas, entre nós, ao contrário, cria-se um conflito entre a visão "artística", defendida pelos fotoclubistas, e a visão "instrumental", própria da reportagem. Conflito, contudo, matizado na análise proposta no livro, que mostra como uma e outra, dentro de parâmetros próprios, renovaram a linguagem fotográfica e permitiram afirmar sua autonomia numa sociedade cada vez mais às voltas com o fenômeno da modernização.
José Yalenti, Thomas Farkas, Geraldo de Barros, German Lorca, Eduardo Salvatore, Marcel Giró, Roberto Yoshida, Gertrudes Altschul, Ademar Manarini, Gaspar Gasparian, Ivo Ferreira da Silva, João B. Nave Filho, Cláudio Pugliese, Eduardo Ayrosa têm suas contribuições estudadas com bastante acuidade visual nos três momentos fundamentais da experiência fotoclubista. Não falta a análise do trabalho de José Oiticica Filho, no qual os autores sublinham a coexistência de uma visão moderna com uma concepção de arte fotográfica "conservadora, quase pictorialista" (pág. 85).
Por ser talvez o caso mais emblemático de uma modernidade complexa e contraditória, José Oiticica Filho merece algumas considerações complementares que problematizem sua idéia de fotografia. Embora a referência ao pictorialismo reapareça na análise das "derivações", tal questão poderia ter sido aprofundada no livro, por encerrar uma contradição, a meu ver, determinante. Ao desdenhar a mediação do aparelho, ao postular, não raro, a construção da imagem a ser fotografada, ao concentrar a operação criadora nos processos de manipulação, Oiticica propõe paradoxalmente uma fotografia que negue a fotografia. Sua busca da artisticidade pressupõe a negação do referente e da máquina, num caminho bem diferente daquele trilhado por experimentadores europeus como Moholy-Nagy e Ródtchenko que, ao contrário, detectam as bases de uma nova visão justamente nas possibilidades técnicas oferecidas pelo aparelho.
A contradição de Oiticica não é explorada em todas as suas implicações porque os autores partem do pressuposto de que a mediação técnica não é de todo necessária na pesquisa fotográfica. Se isso é verdade no caso do fotograma, como é possível eludir, em termos gerais, a questão do processo, central em qualquer definição da imagem técnica? Não que Helouise Costa e Renato Rodrigues não tenham consciência desta problemática, mas diria que acabam enveredando por uma visão um tanto unilateral da modernidade fotográfica, ao concederem primazia à tensão gerada pelo embate da máquina com a busca de uma visualidade liberta de cânones renascentistas. Se tal tensão existe, as experiências de muitos fotógrafos modernos mostraram que era possível superá-la e lançar as bases de uma visão de fato renovada por um uso não convencional do aparelho.
Tal ressalva não retira, contudo, o mérito de uma pesquisa pioneira que, se espera, abra caminho para iniciativas semelhantes que possibilitem um conhecimento efetivo da prática fotográfica no Brasil em suas diferentes diretrizes.

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