São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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Ensaio sobre a cabritologia

ROBERTO CAMPOS

A cabritologia é a ciência de movimentação intensa e igualmente inútil." Eliezer Batista A modernização do Estado brasileiro exige a criação de nova cultura regulatória. Até recentemente prevaleceu entre nós a idolatria do monopólio estatal nos serviços públicos. O Estado substituía o setor privado como investidor e decidia, como déspota esclarecido, o que era melhor para os agentes econômicos e consumidores. As consequências foram um alto grau de paternalismo e um excesso de arbítrio. E, naturalmente, a insatisfação dos consumidores. Felizmente, a mudança da conjuntura mundial e a falência do Estado inchado impuseram-nos uma mudança de rumos.
Quando era ao mesmo tempo operador e regulador, o Estado criou padrões regulatórios que, conforme fez notar Piquet Carneiro, geraram várias distorções: no plano econômico, a ausência de competitividade e o cartorialismo; no plano social, o desrespeito aos consumidores; na esfera administrativa, o centralismo decisório e a multiplicação de controles burocráticos puramente formais. Um outro efeito foi a emasculação dos órgãos reguladores pela agressividade das empresas operadoras. A Petrossauro passou a mandar no antigo CNP, a Eletrossauro ofuscou o DNAEE, e o complexo Telessauro-Embratel dominou o Ministério das Comunicações.
As recentes emendas constitucionais permitem que o Brasil passe do modelo monopolista para um modelo de competição incentivada e regulada.
As novas entidades reguladoras devem ter por objetivo promover a competição, mantendo condições equânimes para operadores públicos e privados, em vez de preservar os monopólios.
Essencial nos novos marcos regulatórios serão: a) a garantia de autonomia decisória para os órgãos reguladores, por meio de mandatos fixos e decisão colegiada; b) a definição de modelos organizacionais; c) a especificação de princípios tarifários.
Dos três setores flexibilizados nas emendas constitucionais, o governo só enviou ao Congresso, em novembro passado, a chamada "lei mínima" de telecomunicações, que trata de telefonia celular e serviços correlatos, sem especificar propostas sobre o órgão regulador. Em março último, o Congresso recebeu o projeto de lei sobre energia elétrica (P.L. 1.669), que prevê a criação de um órgão regulador -a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). Sabe-se que está em gestação no útero burocrático a proposta referente ao petróleo. Parece que se trata de um monstrengo, voltado muito mais para a defesa das posições "conquistadas" pela Petrossauro do que para a atração de capitais privados.
Anatole France definia a teologia como a "ciência que trata com minuciosa exatidão do incognoscível". A lei regulatória que cria a Aneel trata com minuciosa exatidão do acessório, esquecendo o essencial. Contém fórmulas de cobrança de taxa de fiscalização de serviços e cuida das fontes de recursos e composição burocrática do órgão. Nada diz sobre o modelo organizacional nem sobre os princípios de política tarifária.
Há um pecado original. A Aneel nasce como autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia e não como entidade independente. Paralelamente, cria-se um Conselho de Serviço Público de Energia Elétrica, que é um colegiado de sete membros indicados pelo ministro de Minas e Energia e nomeados pelo presidente da República. Na ausência de mandatos, ambos serão meros servidores do Ministério de Minas e Energia. Este será ao mesmo tempo operador (pois controlará as empresas que não forem privatizadas) e regulador do sistema (que inclui concessionárias privadas). Por que a duplicidade de órgãos? Se o conselho for independente, a Aneel é supérflua. E, se esta for constituída como um colegiado independente, por que um conselho paralelo?
Há uma extraordinária arrogância burocrática no item 6º do artigo 3º que, sem distinguir entre concessionárias públicas e privadas, autoriza a Aneel a "fiscalizar, técnica, econômica, contábil e financeiramente as concessões, permissões e autorizações dos serviços de energia elétrica", como se os investidores privados fossem um bando de irresponsáveis.
Caberia também à Aneel aprovar os "estudos de viabilidade, os projetos técnicos e os custos das obras e instalações". É de se supor que as concessionárias privadas, que arriscam seu dinheiro, sejam mais competentes para fazer essas avaliações do que os burocratas de Brasília. Teria ainda a função de "alterar os valores das tarifas de energia elétrica". No conceito moderno de competição regulada, as tarifas são livremente negociadas entre grandes consumidores e geradores, cabendo à entidade reguladora apenas acompanhar a observância da política tarifária a ser aplicada aos demais usuários.
A falta de regras tarifárias claras é hoje um dos principais obstáculos à privatização; entretanto o projeto de lei prorroga por quatro anos o "status quo". Talvez para desincentivar os capitais privados, o projeto se refere à "intervenção" nos serviços concedidos e explicita a hipótese de "encampação" sem, naturalmente, discutir critérios de indenização.
Minucioso em detalhes executivos, o projeto silencia sobre modelo organizacional e critérios de tarifação. Em virtude da evolução tecnológica, o setor da eletricidade, como antes já acontecera com as telecomunicações, é cada vez menos um monopólio natural e cada vez mais susceptível de competição.
Como dizem os professores da Coppe Danilo de Souza Dias e Adriano Pires dos Reis, talvez nossos melhores especialistas em modelos regulatórios de serviços públicos, a indústria da eletricidade passa hoje a comportar duas lógicas: a lógica do mercado para o segmento da geração, que deve ser separado dos segmentos de transmissão e distribuição, em que ainda sobrevivem condições de monopólio natural.
Na transmissão, o órgão regulador deve garantir o "acesso aberto" a vários geradores. Na distribuição, pode-se estabelecer alguma competição pela divisão de áreas nas grandes cidades, a fim de que o usuário possa comparar a qualidade dos serviços. Os modelos mais modernos como os da Inglaterra e Argentina se baseiam no princípio da "desverticalização" e da "horizontalização". Desmembram-se jurídica, ou pelo menos contabilmente, as empresas antes integradas, separando-se os segmentos de geração, transmissão e distribuição.
Somente assim se podem aferir custos e eficiência nos diferentes sistemas e evitar subsídios cruzados que, sob a aparência de beneficiar consumidores, inibem a expansão do sistema e deterioram a qualidade do serviço.
Em matéria tarifária, o Brasil terá que optar entre os vários modelos disponíveis. As suas variantes principais são: o modelo tradicional de "cost plus" (ou retorno sobre o investimento) e o sistema britânico do preço teto ("price cap").
Este é reajustado periodicamente, segundo regras pré-definidas, mas a autoridade regulatória impõe um desconto em função do esperado aumento de produtividade, cujo benefício deve ser repassado ao consumidor. Outros países, como o Chile, fixam tarifas segundo os custos hipotéticos de uma empresa-modelo, desenhada para conciliar os objetivos de expansão, produtividade e satisfação do usuário.
Falando muito sobre detalhes burocráticos (incluindo fórmulas para cálculo da taxa de fiscalização) e nada sobre o modelo organizacional e a política tarifária, o que o Ministério de Minas e Energia enviou ao Congresso é um exercício de cabritologia...

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