São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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Comunhões do corpo com o espírito

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O poeta e crítico Armindo Trevisam vem sofrendo com uma espécie de embargo cultural. Os seus últimos trabalhos não obtiveram o devido destaque na imprensa. Por vezes, nem sequer houve registro. O jornalismo cultural praticado tanto no Rio como em São Paulo ignora a produção de outros Estados. Esse tem sido um procedimento frequente que afeta a normalização da nossa vida literária.
Na condição de crítico, Trevisan publicou, nos últimos cinco anos, três trabalhos importantes, que já mereceriam um comentário mais detalhado: o manual de iniciação artística "Como Apreciar a Arte" (1990), a coletânea de ensaios "Reflexões Sobre a Poesia" (1993) e "A Sombra Luminosa: Ensaios de Estética Cristã (1994). Mas, é o poeta que pretendemos comentar à luz do aparecimento de dois livros: "A Surpresa do Ser" e "A Dança do Fogo".
O primeiro é um relançamento da obra de sua estréia, com a qual obteve, em 1964, o Prêmio Gonçalves Dias, cuja comissão julgadora era formada por Carlos Drumond de Andrade, Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo. O livro foi muito bem recebido pela crítica e saudado por escritores como Murilo Mendes, Dante Milano e Clarice Lispector. De lá para cá, escreveu outros seis, entre eles, o belíssimo "Corpo a Corpo" (1973) e "A Mesa do Silêncio" (1982). Relido após três décadas, permanece de pé e já prenuncia uma das obsessões de sua poesia: o corpo.
Depois de passar mais de dez anos sem publicar poesia, Trevisan volta à cena literária com este "A Dança do Fogo", uma recriação do "Cântico dos Cânticos". Dentro da melhor tradição da poesia brasileira sempre houve uma feliz conjugação do discurso religioso e do impulso erótico, basta lembrar Murilo Mendes e Adélia Prado. Mas, em ambos, o erotismo é libertário e transgressor, sensualidade arrancada do prosaico e do estilo mesclado enquanto Trevisan tende à comunhão do corpo e do espírito, à ocultação do sagrado na simplicidade da nudez corporal.
O livro está dividido em duas partes, "A Luz do Corpo" e "Grinalda de Eros", esta última se subdivide em três: "Ciclo da Colina", "Ciclo dos Lábios" e "Ciclo da Lâmpada". Na primeira parte, há uma ênfase maior nos jogos entre água e fogo, sombra e luz, revelação e ocultamento, entrega e recolhimento como em "Ela Se Despe": "Ela se despe rindo. Sua roupa/ cai sobre a areia, como sons fugindo/ de um oboé que alguém, de noite, sopra./ Semi-eriçado, o corpo dela, abrindo/ as coxas à garupa azul do mar,/ me obriga dentro dele a respirar."
Na segunda parte, a ênfase recai sobre o ritmo dos versos que dançam em torno da imagem. Há uma erotização do ritmo que, ao empregar uma série de repetições, recorda a estrutura da poesia provençal e das cantigas de amigo.
Outra diferença é que a forte indeterminação espacial e temporal da primeira parte é substituída, em alguns momentos, por um universo mais contemporâneo como o do poema "Aeroporto": "Quando tu irrompes, túrgida e coquete,/ no hall de um aeroporto, onde os motores/ dos Boeings -alucinados beija-flores- em nossas confidências se intrometem (...)".
Mas, ao contrário da textura lírico-erótica dos poemas que compunham "Corpo a Corpo", caso de "Jornal" ou "Telefone", este começo de "Aeroporto" cede passagem, nos versos seguintes, ao "miolo da floresta,/ onde reluz tua nudez." É a natureza que predomina sobre o urbano, marcando presença por meio da tópica do "lugar ameno" e das palavras impregnadas de simbologia cristã que reencontramos a cada poema: o trigo, o mel, o vinho, a rosa...
A poesia de Armindo Trevisan, que já foi traduzida para o alemão e está sendo traduzida para o italiano, precisa ser urgentemente avaliada em seu conjunto e analisada segundo as relações de afinidade e diferença que guarda com outras vozes da poesia brasileira. O isolamento em que se encontra é fruto da ausência de reflexão crítica. Para dar um exemplo, não seria difícil aproximar Trevisan do lirismo de Ruy Espinheira Filho. Ambos frequentam as mesmas "sombras luminosas".

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