São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um laboratório diante do Sol

RONALDO ROGÉRIO DE FREITAS MOURÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dos sonhos dos astrônomos que se dedicam à observação do Sol -a monitorização das atividades solares, durante 24 horas, sem interrupção- tornou-se uma realidade em 14 de março de 1996.
Nesse dia, o observatório solar orbital Soho -Solar and Heliospheric Observatory (Observatório Solar e Heliosférico)-, lançado em 1995, da Flórida (EUA), atingiu seu ponto fixo, a 1,5 milhão de quilômetros da Terra, onde a força de gravitação da Terra e a do Sol se equilibram. Esse ponto privilegiado de observação, a partir do qual o Sol é visível o tempo todo, permitirá acompanhar, durante um período de dois a seis anos, todos os fenômenos que ocorrem na nossa estrela.
O Soho poderá sondar o centro nuclear da nossa estrela, observar sua atmosfera, estudar suas pulsações e suas erupções, assim como o vento produzido pelas partículas que o Sol lança no espaço.
Logo após o lançamento, o foguete Atlas 2-AS colocou seu passageiro -Soho- em uma órbita estacionária de 300 km de altitude ao redor da Terra. Uma hora e meia mais tarde, o motor Centauro do Atlas propulsionou o Soho para uma trajetória de transferência em direção ao Sol. A inserção final exigiu três meses de pilotagem até que a sonda viesse atingir, em março, a órbita de trabalho.
Estacionamento espacial
O ponto de Lagrange, ao redor do qual foi satelizado o Soho, não tem nada de misterioso. Ele é conhecido desde o século 18, quando o matemático Joseph Louis de Lagrange (1736-1813) determinou um dos cinco pontos em que a atração de dois corpos, no caso a Terra e o Sol, se equilibra. Todo corpo inicialmente imóvel em L1 e submetido unicamente à gravidade destes dois astros tenderá a conservar essa posição. Mas L1 é um ponto de equilíbrio instável. A cada oito semanas, uma manobra será necessária para manter o Soho na boa órbita ao redor de L1.
A manobra de modificação da trajetória, realizada em 4 de fevereiro, foi tão bem sucedida que o Soho poderá funcionar pelo menos uns 20 anos, em vez dos seis previstos anteriormente, segundo a Agência Espacial Européia.
Agora, os astrônomos solares têm à disposição um autêntico laboratório, o mais completo que puderam utilizar até hoje, muito superior às missões ou aos observatórios lançados com o objetivo de estudar a atividade solar.
Soho é um dos satélites científicos mais complexos construídos na Europa: duas toneladas de alta tecnologia por quatro metros de altura, com uma dúzia de experiências extremamente sofisticadas. Tal refinamento exigiu cuidados especiais como, por exemplo, um elevadíssimo nível de limpeza na construção -os grãos de poeira foram eliminados manualmente, um a um, nas oficinas do construtor francês Matra. Tendo em vista esses cuidados, não causa espanto que a fatura tenha atingido US$ 1 bilhão -ou quase o dobro, se incluíssemos o custo de lançamento e o dos instrumentos.
Interior do Sol
Uma das duas mais espetaculares missões do Soho é sondar o interior opaco do Sol. O método, muito eficaz, consiste em registrar e medir as ínfimas vibrações transmitidas à superfície solar pelas ondas acústicas que se propagam nas profundidades das estrelas. Trata-se de usar o mesmo processo empregado pelos geofísicos para estudar o interior da Terra -a sismologia. Daí o nome heliossismologia, um dos mais jovens ramos da astronomia, que começou a se desenvolver há quinze anos.
Atualmente, existem três redes de heliossismometria ao redor do planeta. Infelizmente, essas redes dependem do ciclo dia-noite, das variações meteorológicas e das turbulências atmosféricas. Se, por um lado, as durações dos registros possuem um período muito limitado de medidas, por outro lado, determinados tipos de vibrações do Sol não são acessíveis aos observatórios terrestres. Com o Soho, acabam as limitações.
Um dos experimentos medirá as vibrações da superfície do Sol em 1 milhão de pontos, simultaneamente. Tal método é particularmente bem adaptado ao estudo da intensidade e da temperatura da matéria na superfície solar. O instrumento Golf, de origem francesa, desenvolvido pelo Instituto de Astrofísica Espacial, e o Comissariado da Energia Nuclear, vai se ocupar das vibrações de grande escala que serão medidas sobre o conjunto do disco solar.
Tremor no Sol
Concebido a partir de instrumentos desenvolvidos pela Universidade de Nice (França) para as estações terrestres da rede Iris, o Golf é capaz de registrar ou detectar, em um segundo, elevações e quedas na superfície da ordem de um milímetro. Um tal nível de aperfeiçoamento cria a expectativa do registro inédito de ondas sísmicas de fraca amplitude oriundas do próprio núcleo da estrela.
A velocidade de propagação dessas ondas, mutáveis com a natureza do meio a ser atravessado, permitirá aos cientistas ter acesso à composição de hélio e à velocidade de rotação do núcleo -dois importantes parâmetros astrofísicos que influenciam o ritmo das reações de fusão termonuclear que ocorrem nessas regiões. Sua determinação poderá auxiliar a resolver o problema da ausência de neutrinos produzidos por essas reações.
Além do mais, espera-se detectar um novo tipo de vibração -as ondas de gravidade-, associadas a períodos da ordem de horas e, por este motivo, inobserváveis a partir do solo, mas extremamente ricas em informações sobre a origem da energia central do Sol.
Com a Soho, é possível ter acesso à dinâmica interna do Sol. Além de estudar a rotação das camadas de matéria em relação à profundidade, é possível testar as hipóteses sobre a maneira como é criado o campo magnético solar, assim como estabelecer correlações entre as vibrações e os ciclos de atividade de onze anos. Ao acompanhar as oscilações de longo termo é possível verificar se o astro sofreu uma lenta dilatação ou uma lenta contração, as quais não podem ser detectadas com os métodos terrestres atuais.
Jatos de gás
Soho também vai estudar e procurar explicar como funciona e sobretudo como se aquece a atmosfera difusa do globo solar, muito quente, e apenas perceptível. Em virtude de sua fraca luminosidade, esta imensa coroa só é observável durante os eclipses totais do Sol ou com telescópios em ultravioleta e raios X. Um dos objetivos do observatório solar é o de sondar profunda e longamente este envelope gasoso ionizado cuja densidade corresponde ao de um excelente vácuo de laboratório.
Seis telescópios, espectrômetros e coronógrafos estão sendo utilizados para estudar as protuberâncias gasosas da baixa coroa e a sua associação com as ejeções de matéria coronal na alta atmosfera.
A origem desses fenômenos permanece duvidosa. Alguns associam-nos à expulsão para o espaço interplanetário das nuvens de poeira de bilhões de toneladas de hidrogênio. Outros preferem associá-los às ondas de choque magnetoidrodinâmicas que se excitam ao atravessarem fugitivamente o meio coronal. Espera-se que Soho possa filmar e restituir, em três dimensões, o desenvolvimento das estruturas coronais ao longo da rotação mensal do Sol.
Outro enigma da física solar à espera de uma explicação é a elevadíssima temperatura que reina na coroa solar, de 1 milhão de graus, em média, até 30 milhões graus, valores que contradizem os princípios da termodinâmica. Não há dúvida de que o aquecimento da coroa provém do interior do Sol, que expele a fonte de energia para o exterior, através da superfície gasosa e luminosa visível, cuja temperatura é de 6.000 graus.
A questão é saber como o gás relativamente frio da superfície pode contribuir para reaquecer o gás muito quente que a envolve. Não existe nenhuma máquina térmica capaz de elevar a temperatura de um corpo com auxílio de um outro corpo mais frio. A termodinâmica pura e a experiência normal ensinam que tal ocorrência é impossível. Tal paradoxo pode ser resolvido supondo que o acréscimo de energia se faz não por um processo térmico clássico, mas por um mecanismo organizado, ordenado, provavelmente de natureza magnética.
Outro fenômeno importante a ser estudado é o do vento solar, cujas partículas ionizadas, além de perturbar as telecomunicações, provocam auroras luminosas e coloridas nas regiões polares.

Texto Anterior: Do espantalho
Próximo Texto: TAI CHI; SEXO E CORAÇÃO; CARNE; GIRASSOL; BIOLOGIA; GEOLOGIA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.