São Paulo, segunda-feira, 13 de maio de 1996
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Autonomia: a receita do Banco Mundial

NEWTON LIMA NETO; NELSON CARDOSO AMARAL

Se seguirmos a receita do Bird, a autonomia universitária pode se tornar um algoz da universidade pública
NEWTON LIMA NETO e NELSON CARDOSO AMARAL
A conquista da autonomia é um ideal que acompanha a história quase milenar das instituições universitárias. Por meio desse princípio, as sucessivas gerações de acadêmicos buscam o autogoverno que, mesmo regulado e fiscalizado pelo Estado, confere independência e criticidade à produção e disseminação do conhecimento e à formação de profissionais de nível superior. O conceito, no entanto, encerra tamanha diversidade de compreensões que se tornou palavra de ordem comum entre contrários, cada qual, evidentemente, dele se utilizando para antagônicos propósitos públicos e privados.
No Brasil, essa estranha sinergia voltou a se manifestar recentemente na reação ao Projeto de Emenda Constitucional enviado pelo governo (PEC-233-A/95). Por meio dele, o MEC remeteu a regulamentação da autonomia à lei ordinária, valendo-se da introdução de um apêndice no texto constitucional. Com interesses diferentes, "romanos e gauleses" uniram-se contra a aprovação do projeto. Para as empresas de ensino, a modificação significa a perda da soberania vigente, que vem impulsionando enormemente seus negócios; para as públicas e comunitárias, a fragilização do princípio, tornando-o vulnerável a frequentes intervenções oficiais.
Quando o assunto é o financiamento das universidades públicas, o falso consenso sobre o tema da autonomia também se evidencia. Com a preocupação de fortalecer, aperfeiçoar e expandir o pouco que resta do ensino superior público e gratuito no país, é recorrente a discussão no âmbito das universidades federais sobre a necessidade de se pôr em prática o preceito constitucional.
Esta visão é alimentada pela experiência das universidades estaduais paulistas que lograram, há oito anos, exercitar a autonomia em sua plenitude, com resultados, até aqui, considerados auspiciosos porque apoiados em garantias legais de sustentação financeira (receita vinculada à arrecadação de impostos estaduais) e unicidade salarial construída no consenso.
A autonomia, no entanto, longe de ser uma panacéia para os males das universidades públicas, pode se transformar no seu, embora camuflado, mais eficiente algoz. Para tanto, basta que as políticas educacionais dos governos dos países em desenvolvimento adotem o receituário do braço financeiro dos "romanos" de hoje, o Banco Mundial.
Em documento de 1995, intitulado "La Enseñanza Superior: Las lecciones derivadas de la experiencia", o banco apresentou sua opinião sobre o assunto. A partir de uma visão financista, que vê as pesquisas realizadas na universidade sob o ângulo exclusivo de suas repercussões na economia, que fomenta a contraposição -na esfera pública- entre o ensino superior e os outros níveis de escolaridade, que prega a implantação do ensino pago e propõe financiamento público ao sistema privado, o Bird ensina:
"A introdução de uma maior diferenciação no ensino superior, ou seja, a criação de instituições não universitárias e o aumento de instituições privadas, pode contribuir para satisfazer a demanda cada vez maior de educação superior e fazer com que os sistemas de ensino melhor se adequem às necessidades do mercado de trabalho". Como se sabe, esta lição já foi aprendida pelo Brasil, com nota máxima e distinção.
Quanto à autonomia nas universidades públicas, observa o banco: "Uma maior autonomia institucional é a chave para o êxito da reforma no ensino público superior, especialmente a fim de diversificar e utilizar os recursos mais eficientemente...". E segue o texto: "Uma meta indicativa poderia ser as instituições estatais de nível superior gerarem recursos suficientes para financiar aproximadamente 30% de suas necessidades totais de recursos", citando o Chile como exemplo dos que já atingiram esse percentual e podem ampliá-lo.
Sobre esta parte da matéria, ainda temos a possibilidade da saudável reprovação. Caso contrário, se não tomarmos as devidas precauções e abrirmos mão de estratégicas garantias, podemos acabar bons alunos aos olhos do Bird, como o Chile, mas, em contrapartida, comprometer a qualidade do sistema e mergulhá-lo numa crise de proporções incalculáveis.
Para quem duvida, recomenda-se a leitura do jornal "El Mercurio", de 23/11/95. Nele, o reitor Jaime Lavados, da Universidade do Chile (pública e com 153 anos de existência), adverte: "A crise das universidades tem suas raízes no Estado e no país". O pronunciamento do reitor se deu em meio às manifestações de protesto promovidas pelo Conselho Universitário em função da situação orçamentária da instituição, marcadas pelo fechamento simbólico das portas do edifício central da universidade, passeata dos membros daquele Conselho em pleno sol pelas ruas de Santiago e hasteamento da bandeira a meio-pau. Esperamos não ter, um dia, que chegar a tanto.
Newton Lima Neto, 43, é reitor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Foi presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) de 1994 a 95.
Nelson Cardoso Amaral, 43, é vice-reitor da Universidade Federal de Goiás (UFG) e secretário da Comissão de Orçamento da Andifes.

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