São Paulo, terça-feira, 14 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Privatizar a dívida social

LUÍS PAULO ROSENBERG

Combate à miséria é assunto muito sério para ser deixado nas mãos do governo.
Esse pensamento ganha importância agora, depois da justa revolta de Betinho contra a falta de verbas para programas de caráter social e de geração de emprego do governo FHC.
Afinal, o ministro Serra, responsabilizado por Betinho pela falta de uma prioridade social no governo, não pode ser o perdulário culpado pela geração do déficit público atual, como afirma o Banco Central, e, ao mesmo tempo, o austero insensível, como quer Betinho.
O buraco é mais embaixo: o governo federal quebrou.
A receita federal não pode subir mais, pois a carga tributária sobre famílias e empresas está intolerável. De fato, no tempo, a tendência tem que ser de queda dessa carga, à medida que aumenta a base de tributação, permitindo uma redução do custo do empresário nacional para fomentar o emprego.
A despesa federal está amarrada e consumida por dispositivos constitucionais, determinando o gasto com repasses, vinculações, isonomias, biênios, quinquênios, licenças-prêmios aos funcionários públicos, quando suas esposas dão à luz, e às funcionárias públicas, quando seus maridos extraem a próstata ou as amídalas.
Claro, sempre se pode lembrar os pagamentos dos juros excessivos pelo governo e o uso da sua capacidade de endividar-se, sacrificada em cada Proer, como fontes de recursos para os programas sociais.
Entretanto, já estamos em um nível de déficit incompatível com a estabilização dos preços -o mais importante programa social que há. É imperativo, pois, baixar os juros e abortar a sucessão de quebras bancárias, para impedir que a dívida pública continue crescendo ao inadmissível ritmo atual.
Dado o passado de caloteiro contumaz do governo brasileiro, se não revertermos a tendência ascensional do déficit, proliferarão os artigos chamando a atenção dos investidores para o risco de moratória, provocando a fuga dos papéis federais e inviabilizando o giro da dívida. Basta lembrar quantos textos já saíram neste jornal, nas últimas semanas, tratando do tema.
Ora, como deve proceder o governo para pagar a dívida social, se não consegue aumentar receitas e não pode aumentar nem despesas nem seu endividamento, mesmo que seja para pagá-la a prestações, como o presidente?
Há duas opções: vender suas empresas e concessões de serviços, gerando caixa para novos programas sociais ou transferindo diretamente ao setor privado a função de acudir seus semelhantes.
A primeira opção é simples. No seu livro "As Sandálias do Pescador", Morris West leva o papa a optar por vender os tesouros do Vaticano, transformando-os em comida para os desesperados, como forma de evitar um confronto nuclear mundial.
Similarmente, FHC transformaria os recursos oriundos da venda da Vale do Rio Doce em um fundo de fomento ao emprego e Mário Covas sustentaria seus programas educacionais com a receita produzida pela transferência do direito de exploração das rodovias paulistas ao setor privado.
A segunda opção é mais radical e eficaz: em vez de termos um conhecedor da problemática social do país, como Betinho, batalhando verbas do governo para implantar seus programas, deveríamos ter um mobilizador de fundos do setor privado, como Antonio Ermírio, liderando a organização de recursos e talentos de empresas e famílias na ação contra a miséria.
A exemplo do que já se faz (timidamente, é verdade) com as artes, o topo da pirâmide social assenhorar-se-ia da missão de liderar o sentimento de solidariedade nacional -agora, para acudir os desprotegidos.
O governo entraria apenas com sua enorme força de comunicação social, auxiliando os empresários que comandariam o processo a construir uma rede capilar de mobilização de esforços, repetindo as experiências guerrilheiras e militares bem-sucedidas de gotejamento da cadeia de comando.
Solução complexa e trabalhosa, sim. Mas factível, trazendo como subproduto o desenvolvimento da noção de nação, de um todo maior do que a soma das partes, que tanta falta faz nos momentos de aceitarmos sacrifícios coletivos.
Além de jogar água no pavio aceso do barril de pólvora da iniquidade social, em que estamos todos sentados, balançando alienadamente as perninhas.

Texto Anterior: Hora de sair; Motivo da suspensão; Direito adquirido; No conselho; Livros abertos; Prisão nos EUA; Em audiência; Favor legal; Idas e vindas; Contra o martelo; Preço do Fiesta; Alta rotatividade; Qualquer quorum; Fábrica virtual; Em terra; Rumo ao Brasil; Liderança coreana; Força maior
Próximo Texto: Como legalizar fraudes e criar rombos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.