São Paulo, quinta-feira, 16 de maio de 1996
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O fim da novela

OTAVIO FRIAS FILHO

O auge das novelas de TV foi quando elas descobriram o realismo social, nos anos 70, e passaram a reconstituir costumes, épocas, geografias inteiras. Houve novela sobre escravidão, sobre cacau, sobre gado, praticamente nenhum ciclo econômico ou sub-região escapou ileso. A novela ganhou ares documentais, quase artísticos.
Esgotados os rincões e os sotaques, o gênero entrou em crise, abalado também pelos hábitos fragmentários do telespectador, cada vez mais dispersivo conforme aumenta a competição pelo seu tempo. É só por razões de escala -cada capítulo custa uma ninharia se comparado ao de uma minissérie- que as emissoras continuam impingindo novelas.
A Rede Globo experimenta agora uma forma condensada de novela, no horário de maior audiência. Uma certa tendência a desregionalizar, que já vinha aparecendo em novelas anteriores, chega desta vez aos extremos do sincretismo, como se fosse preciso empacotar um máximo de situações e ambientes num mínimo de tempo -e de paciência.
Não é de agora que a emissora desistiu dos sotaques; parece que a fonoaudiologia mais avançada não conseguiu resolver o problema. Determinou-se, então, que cada ator fique livre para adotar o sotaque da sua preferência. As novelas já não se dividem, aliás, em urbanas e rurais, mas acontecem em algum lugar que não é campo nem cidade.
Coronéis do sertão convivem com punks, lésbicas com senhoras católicas, empresários de celular com boiadeiros, os atores reunidos na cidade cenográfica como se pertencessem a elencos diferentes esperando para gravar diferentes novelas, ou como se cada um tivesse apanhado às pressas a primeira roupa que achou no camarim.
Como estamos acostumados ao argumento, repisado durante anos por intelectuais de esquerda, de que a novela reproduz a nossa realidade social, somos tentados a imaginar que esse ultra-sincretismo, esse amálgama de enredos disparatados e absurdos, corresponde, sem trocadilho, à forma brasileira de globalização.
Isso poderia ser verdade se não correspondesse, antes de mais nada, a um aspecto da evolução do mercado de entretenimento em geral. A mesma coisa aconteceu com os desenhos animados, por exemplo. Zé Colméia ou Pepe Legal viviam em universos delimitados e congruentes, aqui o Parque Yellowstone, ali o Velho Oeste.
O Mandachuva não saía do seu beco nova-iorquino para catar nozes, nem o Guarda Belo usava pistolas atômicas. Essa lógica interna foi pelos ares, até onde foi possível acompanhar, com os desenhos de Scoobydoo, chegando à sua forma definitiva com o sincretismo greco-nórdico-oriental dos Cavaleiros do Zodíaco.
Submetidos à pressão crescente do mercado, essas formas de entretenimento perdem seu aspecto "artístico" conforme passam a depender, cada vez mais abertamente, de elementos estranhos à arquitetura interna da "obra". Constrangimentos externos, até certo ponto, afinam essa arquitetura; acima de um limite, porém, o edifício vem abaixo.

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