São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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As névoas do álcool e da cegueira

DO ENVIADO A BUENOS AIRES

A escritora María Esther Vázquez, que escreveu com Borges "Introdução à Literatura Inglesa" e "Literaturas Germânicas Medievais", provocou uma comoção na Argentina ao lançar, há três meses, a biografia "Borges, Esplendor y Derrota".
Além de ataques à viúva, María Kodama, o livro trouxe a público facetas pouco conhecidas de Borges, como seu período boêmio, seu nacionalismo juvenil e um número espantoso de namoradas.
A autora, que está preparando seu quinto livro de contos e é casada com o poeta Horacio Armani, diz que foi uma das muitas mulheres a quem Borges, sem sucesso, propôs casamento.
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Folha - A sra. se surpreendeu com alguma coisa que descobriu durante a pesquisa para o livro?
Vázquez - Sim, várias. Por exemplo, quando tive acesso a cartas de Borges do período de 1928 a 40, conheci sua relação com uma mulher que o trocou então por outro, com quem se casou, e que depois de ficar viúva aproximou-se de novo de Borges, e acabou se casando com ele muitos anos depois, em 1967. Essa mulher era Elsa Astete. Depois, uma pessoa me deu uma fita de Borges gravada nos anos 60, e me dei conta de que Borges tinha um modo de falar com as mulheres e outro com os homens. Com os homens, dizia palavrões, coisas muito fortes, e com as mulheres se cuidava muito, sempre se colocava numa posição de cavalheiro do século 19. Com tudo isso, tentei fazer um Borges de carne e osso, porque todos conhecemos o Borges velho, com aquela imagem rígida, de Homero "criollo". Aliás, ele andava duro, com a cabeça levantada, porque se inclinasse a cabeça lhe caía a retina.
Folha - Seu livro destaca em especial a vida amorosa de Borges. Este foi um dos aspectos mais importantes de sua vida?
Vázquez - Sim e não. Ele me disse um dia: "Perdi metade da minha vida pensando em mulheres". Ocorre é que Borges se apaixonava seguidamente, e, quando se apaixonava, assediava o objeto desse amor, com resultados geralmente negativos.
Folha - A sra. diz que em sua juventude ele teve sua fase de bêbado.
Vázquez - Sim, se embebedava quase todas as noites quando tinha 20 e tantos anos. Ele mesmo contou isso a mim, e contou também por que deixou de beber. Uma noite, num bar, ouviu um homem dizer: "Bom poeta, esse Borges". E uma moça completar: "Pena que seja um bêbado". Ficou tão chocado que decidiu não beber mais. Apesar disso, antes de ser atacado pela úlcera, ainda costumava tomar, antes de cada conferência, um copinho de guindado oriental (aguardente uruguaia) ou de cachaça brasileira.
Folha - Seu livro dá a impressão de que Borges foi quase um prisioneiro de María Kodama.
Vázquez - Sim, por uma circunstância ou outra, ela o foi afastando de nós, seus amigos, que não obstante continuávamos a ter contato com ele. Porque María não ia todo dia à casa de Borges, ia só às terças e quintas. Borges estava muito só naquela época. Uma vez, entrei em seu apartamento e o surpreendi sentado sozinho na penumbra, recitando sozinho versos alheios, com um ar desolado. Senti uma grande pena dele.
Folha - Como era a cegueira de Borges?
Vázquez - Ele via a luz e a sombra quase até o final. Quando eu o conheci, nos anos 50, ele colocava o livro quase grudado no nariz e conseguia decifrar o título. Depois, foi perdendo as cores. O marrom, ele via roxo. O negro, nunca conseguiu ver. O verde, via azul. A última cor que ele perdeu foi o amarelo. Em seus aniversários, todo ano, ganhava gravatas amarelas. Mas ele conservava uma espécie de janelinha, de um ponto mínimo, através do qual, dependendo da luz, podia ver algo. Uma vez fui com ele ao cinema -apesar de cego ele ia, para ouvir os diálogos- e, numa cena muda, ele me disse: "Estão jogando baralho". Pela sua "janelinha", ele via as cartas, mas não o rosto dos atores.
Folha - Como ele reagia a esse problema?
Vázquez - Sofria muitíssimo, ainda que dissesse: "Não é tão dramático, é como se eu fosse avançando lentamente pela névoa". Não era só o fato de não poder ler. Alguém tinha que cortar a carne para ele, e ele ciscava com o garfo para encontrar os pedaços. Era patético, e ele sabia disso.
Folha - É verdade que Borges gostava de Machado de Assis?
Vázquez - Sim, muitíssimo. Havia dois escritores de língua portuguesa que ele amava: Camões e Machado de Assis. Uma vez também eu li para ele um conto lindíssimo e muito triste de Guimarães Rosa, "A Terceira Margem do Rio". Me emocionei muito lendo, e Borges também, e depois, quando se encontrou pessoalmente com Guimarães Rosa, num congresso de escritores, não perdeu a oportunidade de felicitá-lo. Li também alguns fragmentos do "Grande Sertão: Veredas", mas a linguagem é muito difícil para nós.

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