São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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Os mitos de fundação do individualismo moderno

TZVETAN TODOROV
ESPECIAL PARA "THE NEW REPUBLIC"

Ian Watt ocupa uma posição de destaque entre os críticos e historiadores da literatura contemporâneos. Sua primazia deve-se a três características de sua obra. Primeiro, a diversidade de seus interesses: o romance realista inglês de Defoe a Fielding; o posto da escrita e do livro na história das culturas; Joseph Conrad, o homem e a obra; e os mitos europeus modernos.
Segundo, a grande abertura metodológica de Watt. Ele utiliza um método "sintético", isto é, não escolhe entre a história das idéias, a análise sociológica e a compreensão formal ou estilística; ele as domina a todas. A isto ele acrescenta um estilo firme e límpido, muita vez tingido de ironia, nunca contaminado pelo jargão. Watt dirige-se ao leitor comum, não ao conventículo de especialistas.
E há também, em terceiro lugar, a excepcional qualidade dos livros publicados pelo autor. Infalivelmente empenhado no rigor empírico, Watt não hesita no entanto em debruçar-se sobre os principais problemas da história do pensamento. "A Ascensão do Romance", que apareceu em 1957 na forma reelaborada de sua antiga dissertação, não é simplesmente um estudo admirável de vários romancistas ingleses; é também uma análise inovadora do homem moderno, na qual Descartes e Locke não emergem com menor importância do que Richardson e Fielding. "Conrad no Século 19", de Watt, bem como seus demais estudos sobre seu escritor preferido, lançam luz não apenas em Conrad, mas também nas interações ideológicas e sociais que caracterizaram a situação européia ao final do século 19.
Ian Watt é um perfeccionista e um professor apaixonado. Isso explica sua capacidade de retornar, no curso de 50 anos, ao mesmo livro sem jamais terminá-lo. Em 1994, ele adoeceu gravemente e viu-se impossibilitado de trabalhar, mas seu grande estudo sobre os mitos europeus, concebido em fins da década de 40 e em progresso desde então, encontrava-se ainda incompleto. Felizmente, no entanto, não estava longe da conclusão. O editor de Watt, com auxílio da família do crítico, teve êxito em reunir o livro de que dispomos agora ("Myths of Modern Individualism", Cambridge University Press, 293 págs, US$ 27,95). Watt certamente teria feito mudanças significativas, mas a essência de seu extraordinário projeto foi bem captada.
Somos todos familiares aos antigos mitos gregos, romanos e cristãos. Mas como nasceram os mitos modernos? Watt faz uso de uma engenhosa definição do escritor francês Michel Tournier: "Um mito é uma história que todos já sabem". Se é verdade que os mitos modernos têm origem nas obras de autores individuais, eles se tornam mitos graças ao público, e não graças a seus mentores. O mito transcende a obra de seu autor e ressurge no trabalho de outros.
Watt propõe-se a saber quais mitos europeus modernos são mais difundidos e persistentes, e chega a uma lista de quatro: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan e Robinson Crusoe. Os primeiros três apareceram na literatura à época da Contra-Reforma; o último, um século mais tarde. Todos os quatro permanecem ativos e férteis até hoje.
Watt não está interessado em escrever uma história minuciosa desses mitos -isso já foi feito. Seu propósito é compreender o significado do fato cultural como um todo. Por que tais mitos emergiram aproximadamente à mesmo época? E por qual evolução passou seu sentido da era romântica até o presente? O que tais mitos e suas transformações nos ensinam sobre a identidade do homem moderno? De fato, a ubiquidade e a persistência de relatos como estes não podem ser fortuitas. Tais narrativas a um só tempo revelam e influenciam o modo que os europeus conceberam e imaginaram suas próprias vidas. Elas são tanto o produto quanto a força propulsora de nossa história.
Mais precisamente, Watt tem em vista delinear e analisar três níveis de sentido nos mitos: o que a obra oferece abertamente à leitura, o que pode ser notado por meio de certas ambiguidades no texto e o que lhes é atribuído por escritores desde Rousseau a Dostoiévski.
O Fausto original -no "Faustbuch" (1587) alemão, que toma emprestado elementos da vida real de um certo Georg Faust, meio cientista, meio charlatão, e na tragédia "Doctor Faustus" (1592), de Marlowe- é um homem que aspira ao conhecimento absoluto a fim de obter o poder absoluto. Indiferente aos meios, ele faz um pacto com Mefistófeles, o mensageiro do demônio, prometendo-lhe sua alma em 24 anos; nesse meio tempo, consagra-se à magia. Tal rebeldia contra Deus não pode passar sem punição: Fausto é sujeitado a uma morte atroz, e sua alma padece danação eterna.
O "Dom Quixote" de Cervantes (primeira parte, 1605; segunda parte, 1615) é um nobre empobrecido que acredita na verdade literal dos romances de cavalaria. Ele repudia o mundo, na forma como este é entendido por seus contemporâneos, e interpreta todo acontecimento de acordo com os próprios postulados, confundindo seus desejos com a realidade. Acompanhado de seu fiel escudeiro, Sancho Pança, ele percorre as estradas da Espanha e conhece o sucesso e a humilhação, até que uma última derrota o obriga a regressar a casa. No leito de morte, ele admite suas antigas sandices e condena os romances de cavalaria.
Dom Juan Tenorio, protagonista de "O Trapaceiro de Sevilha e Seu Hóspede de Pedra" (cerca de 1616), de Tirso de Molina, é um homem que deseja seduzir todas as mulheres e que, para tanto, está disposto a empregar quaisquer estratagemas. Durante uma de sua expedições, ele mata o pai de uma jovem a quem corteja, e depois zomba da estátua de pedra que adorna o túmulo de sua vítima. Num entardecer, a estátua lhe dirige a palavra e o convida a um banquete. O intrépido sedutor aceita e é escoltado ao inferno. Todo perdão lhe é negado.
"Robinson Crusoe" (1719) é um jovem que sonha com aventuras. Seu pai é contrário a seus planos, mas o filho ignora a proibição e embarca em viagem. Seu destino o conduz por entre vários incidentes até o dia em que o barco de Crusoe naufraga e ele se vê em apuros numa ilha deserta. Trabalhando como um condenado, ele consegue levar uma vida confortável; um dia ele resgata um jovem selvagem e o batiza Sexta-Feira. Após 28 anos, Crusoe logra rumar para casa num outro navio, acompanhado de seu criado, Sexta-Feira. Lá ele toma conhecimento que seus pais há muito estão mortos.
Se nos ativermos a esses resumos das obras em que os mitos apareceram pela primeira vez, salta aos olhos que todos eles são punitivos. Em cada exemplo, o herói desafia as normas da sociedade a fim de seguir o desejo que o move.
No conflito que joga o indivíduo contra as normas sociais, portanto, são sempre as últimas que triunfam. Os mitos (sobretudo os três primeiros, que surgem quase à mesma época) são animados pela ideologia da Contra-Reforma, um movimento de reação às revoltas insufladas por Lutero e Calvino contra a ordem tradicional.
Mas caso fossem meras ilustrações da moral reinante, as quatro histórias jamais teriam alcançado o status de mito e logo seriam esquecidas. As obras originais, ao lado de seu significado edificante, oferecem um segundo significado, que complica a mensagem. Para isso elas convertem o herói, a princípio atemorizante, num ser atraente, ou então retratam a sociedade tradicional contra a qual ele se rebela, como não totalmente digna de admiração.
Com o início da era romântica, na opinião de Watt, esses quatro mitos foram investidos de novo significado, fruto de um mal-entendido das intenções originais dos autores, mas que expressa convincentemente as aspirações da nova sociedade. Rousseau dá o tom da análise em seu "Émile", interpretando Robinson Crusoe como uma celebração da autonomia física e da vida natural. Como observa Watt, "o ideal ecológico básico de Defoe, porém, não era a vida natural e a natureza, mas a urbanização da zona rural".
O doutor Fausto sofre uma considerável metamorfose nas mãos de Goethe. Ele não busca mais o conhecimento absoluto para aumentar seu poder, mas um valor muito mais característico da mentalidade moderna: a sensação de realmente viver. O novo Fausto tem avidez pela intensidade das experiências, por um momento de completa presença para si mesmo.
Quanto aos dois Doms, as duas encarnações do nobre espanhol, suas fortunas são diversas. Em certas obras, mas sobretudo na consciência popular, Dom Juan, o sedutor, torna-se o amante profissional, o aventureiro em quem a homenagem rendida ao sexo compensa a infidelidade: infiel às mulheres, mas fiel à Mulher.
Dom Quixote torna-se a simples encarnação do ideal, o exemplo da virtude, tristemente subjugada nos domínios inferiores de nossa Terra pelas forças da realidade. Assim, Dostoiévski aproxima Dom Quixote de Jesus, dois avatares da perfeição humana, e cria o príncipe Míchkin, um Quixote contemporâneo que paga com a pecha de "idiotismo" sua irrepreensível filiação ao bem.
Esta foi a grande inovação na leitura desses rebeldes: os indivíduos em rebelião contra a sociedade são heróis que despertam nossa simpatia e até nossa admiração. Seu castigo é suspenso ou olvidado. Nas versões originais, a sociedade triunfava sobre os indivíduos. Nas versões oitocentistas, o indivíduo triunfa sobre a sociedade, pelo menos em nossos corações.
Pode-se depreender desse resumo a riqueza de questões levantadas pelo material no livro de Watt. A fim de abranger três séculos de história cultural e intelectual, ele é forçado a selecionar e condensar; especialistas nessa ou naquela obra, nesse ou naquele período, talvez encontrem mais o que dizer. Mas isso não importa na verdade, pois o esquema do todo é enérgico e convincente.
Se tenho algo a lamentar, seu fundamento é outro. O livro de Watt possui a curiosa característica de ser geral sem jamais cair na abstração. O motivo é que ele passou a precaver-se cada vez mais de tudo o que não pode ser extraído do fato nu e cru. E como diz preferir a pesquisa empírica à análise filosófica, Watt devota pouquíssimo espaço aos debates sobre o individualismo, embora eles sejam indispensáveis à sua tese.
A história do termo "individualismo" é relativamente simples. Parece que foi Tocqueville (ou algum de seus contemporâneos) o primeiro a utilizar o vocábulo, que é apresentado como um neologismo no segundo volume de "A Democracia na América". Para Tocqueville, ele significa uma renúncia dos interesses públicos em favor da esfera privada (família, amigos, prazeres). Trata-se da substituição da comunidade única pela infinitude de células autônomas, uma consequência do espírito igualitário que reina na democracia. O horizonte do individualismo, portanto, é a solidão.
Mas o termo adquiriu também um sentido mais amplo, segundo o qual ele descreve a ideologia de uma sociedade que toma o indivíduo humano como seu valor cardeal. Neste sentido mais amplo e mais positivo, o individualismo tem sido a ideologia dominante da moderna sociedade ocidental desde o Renascimento.
Essas duas acepções de "individualismo" levantam uma questão importante. Será que a primeira implica a segunda? A correlação entre ambas é necessária e inevitável? O reconhecimento do indivíduo como sujeito de direito, como valor irredutível, conduz inexoravelmente ao atomismo social e ao isolamento essencial dos indivíduos? E à sombra da análise de Watt, mais uma questão: qual a luz que estes mitos europeus, responsáveis por modelar nossa imaginação, lançam sobre o assunto?
Se examinarmos de perto os quatro mitos de Watt, em sua forma original, veremos que a rebeldia do herói é muito mais contra a autoridade que contra a imposição da vida em sociedade. O doutor Fausto revolta-se contra os limitações impingidas ao conhecimento humano. Dom Quixote desafia o consenso social sobre a realidade. Dom Juan ridiculariza as normas de existência comum. Robinson Crusoe busca escapar à autoridade paterna. A solidão de todos eles é uma consequência de seus atos de ruptura, e não seu objetivo.
As versões originais dos mitos, em suma, descrevem a revolta da autonomia contra a autoridade.
Watt permanece discreto em seus juízos, mas podemos entrever que sua visão da sociedade moderna é sombria. Ao comentar o "Fausto" de Goethe, ele escreve: "E não é certo que nossa cultura opera sobre o princípio 'mesmo que as raias não estejam demarcadas e não haja linha de chegada, continue correndo que ao final lucrará algo'? Mas o quê?". E nas últimas páginas de seu livro, após notar com aspereza o declínio da leitura, ele observa que todas as alternativas desejáveis "revelam-se antiindividualistas: um sentido da história, uma ética absoluta do certo e o errado, a consciência dos direitos e sentimentos de outrem, a disciplina na família e na escola, o elitismo cultural".
Debitar toda a culpa, então, na conta do individualismo? Somente se formos incapazes de traçar a distinção entre as duas acepções do termo, entre autonomia e solidão, forçando a primeira no interior da segunda. Mas nenhum dos mitos nem sua história permite tal combinação. É possível rebelar-se contra a lei externa (emanada de Deus, da tradição) e ainda assim preocupar-se com a comunidade humana. A lei que escolhemos para nós assegura o exercício de nossa liberdade, mas ainda assim é uma lei. Não é necessário reduzir o individualismo ao egotismo.

Tradução de José Marcos Macedo.

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