São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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"O Brasil morre de medo do sucesso"

LUIZ CAVERSAN

O percussionista, compositor e cantor baiano Carlinhos Brown acaba de lançar seu primeiro disco solo, "Alfagamabetizado". Para que um dos mais festejados representantes da nova geração de músicos brasileiros falasse de seu novo trabalho -que foi finalizado na França e será distribuído até no Japão-, a Revista convidou um entrevistador muito especial: Gilberto Gil.
O encontro de gerações (Gil tem 53 anos, Brown, 32) e de perspectivas se transformou num "papo-cabeça" de quase duas horas.
Panafricanismo, negritude, brasilidade e ritmos predominaram na conversa, que ocorreu no apartamento de Gil diante da praia de São Conrado, zona Sul do Rio. Eis, a seguir, trechos da entrevista bate-papo:
Gilberto Gil - Quanto tempo você levou para fazer o disco?
Carlinhos Brown - Eu comecei a gravar no ano passado, no Rio de Janeiro. Depois fomos à Bahia e a Paris, onde ele se findou nas mãos do produtor Wally Badarou. Começou aqui com o Arto Lindsay e terminou lá com o Wally.
Gil - E você gostou do disco?
Brown - Não, pela insatisfação que eu tenho em geral com as coisas...
Gil - É parecido comigo...raramente gosto...
Brown - Acho que é 30% do que eu queria.
Angústia
Gil - Quando eu era menino e tinha uma atração natural pela música fui logo procurar os tambores para batucar. Mas você se profissionalizou na percussão mesmo. Depois é que passou a compor e agora a cantar. Como é isso no seu modo de sentir?
Brown - O fato de estar sintetizando estas coisas todas me provoca grande angústia em relação ao que eu tento expressar. Não que eu queira ser cantor. Mas na minha rua minha mãe era a mãe do cantor. O Brasil tem essa necessidade de classificar o artista de música pelo canto.
Gil - Isso vem da tradição dos tempos da Rádio Nacional. Quando anunciavam nas rádios um disco eles diziam: música tal, criação do cantor tal, composição de tal. Isso quando se mencionava o compositor...
Brown - O Brasil é um país que morre de medo de fazer sucesso, de se assumir. Ontem eu tive o prazer de ir na Mangueira pela primeira vez e quando saí de lá encontrei numa praia uns caras tocando funk. Aí eu disse: ou meu país, por ser miscigenado, sintetiza os outros ou os bairros não se amam.
Gilberto Gil - É mais a primeira coisa...
Brown - Somos um país da imagem? Porque a gente vive o som, não entende o inglês.
Apartheid
Gil - Você ficou em dúvida se é porque o Brasil é esse sorvedouro de tudo o que acontece no mundo ou se é o "apartheid" dos bairros. Eu particularmente acho que é mais porque é assim mesmo, um país novo. Consome-se aqui o mundo e cria-se aqui também o mundo.
Brown - Aqui há a globalização. A gente não precisou da Internet para ser global. Já éramos desde os navios negreiros. Se já somos isso há anos, porque os bairros não se amam? Quando o Caetano falou da questão de parar no sinal do trânsito, nada me tocou mais em termos de cidadania. Porque o cara que pára no sinal ele pode enxergar o menino de rua e às vezes a solução está até nisso. Por isso que digo que os bairros não se compactuam. Os pobres precisam perder a ilusão de que são os ricos o caminho deles e buscar seu caminho de conforto. Mas eu acredito que existe uma necessidade nossa de transformar Carlinhos em Brown.
Gilberto Gil - Em vez de preferir a palavra em brasileiro português, botar o apelido americano?
Brown - É. Talvez "Alfagamabetizado" seja uma discussão em relação a isso: por que vocês quiseram que eu fosse Brown?
Gil - Quem foi que botou este apelido?
Brown - Não sei! Ganhei na rua. Eu quero discutir o que eu faço com um apelido que me foi dado...
Gilberto Gil - Eu acho que este apelido faz jus inteiramente ao pluralismo estilístico e internacionalista, panafricanista, panamericanista que sua música tem.
"Silva"
Brown - O Brasil não é só verde, anil e amarelo, mas cor-de-rosa e carvão. Mas não é Brown! (risos) Isso não é uma raiva, nem é uma angústia, mas eu gosto de ser Silva e de ser Santos...
Gil - Carlinhos Brown a gente gosta também (risos). Eu tenho uma dificuldade de escrever Brown, quando me refiro a você. Escrevo Brau. Porque não me vem à cabeça o inglês, o James Brown, nada disso. Vem o Brau, o brrráááá, que é o que você faz, que é o que você é, que é um som.
Gilberto Gil - Há vários momentos do disco que têm um ar, uma atmosfera Sade, a cantora que é de origem sul-africana, inglesa, crioula meio mestiça e oriental. Você gosta dela?
Brown - Eu acredito que a Sade seja uma apaixonada pelo Brasil. É bem bossa-novística, é bem Nara Leão.
Gil - É bem Astrud Gilberto...
Brown - Eu não tinha pensado nisso, mas acho o máximo ter Sade...
Pressa
Gilberto Gil - Apesar de você ser um dos criadores da rítmica baiana, este disco não é como muitos esperavam uma afirmação rítmica.
Brown - Neste convívio com vocês -você, Caetano e estes grandes artistas do Brasil- eu aprendi muito a valorizar o tempo, não a pressa. Seria muito fácil eu fazer um disco lotado de batucada.
Gil - Você tem um gosto pelo aspecto poético de dizer as coisas, pela capacidade de irradiar sentidos múltiplos e inesperados através das palavras, que a arrumação poética tem. Eu sinto você como uma pessoa envolvida pelo delírio poético, pelo barato da poesia, a poesia meio como maconha. Como a poesia entrou na sua vida?
Brown - Isso é uma culpa de vocês, na verdade. Eu gosto de poesia por imagens que conheci. Eu nunca tinha visto uma Coca-Cola e quando vi uma mulher linda caminhando contra o vento foi uma imagem muito marcante. E "Domingo no Parque" me dava medo.
Sapatanismo
Gilberto Gil - Há no disco a frase "a namorada tem namorada". O que você quis dizer com isso?
Brown - Há anos eu quis gravar esta música e as pessoas diziam que parecia sapatanismo. E o que eu falo é do fato de a pessoa encontrar o feminino em um homem. Eu sou a namorada da minha namorada, com o maior prazer.
Gil - Mas sem dúvida nenhuma a sapataria vai amar (risos).
Brown - Agora sou eu que quer perguntar: você acha que o "Expresso 2222" já está circulando, já não é mais um começo, já é 3333?
Gil - Aquele música retrata uma visão delirante sobre uma série de signos com os quais a gente operava naquele momento, a visão do futuro da humanidade, uma coisa sobre as expectativas aquarianas, de uma transformação, enfim. A segunda vinda do Cristo, que é coisa especulada por algumas correntes religiosas. O Cristo etéreo, luminoso, transmutado. Aquela estrada brilhante e iluminada. Toda uma epifania da descida de uma coisa que vem do céu.
Brown - E este seria o Super-Homem?
Gil - É uma leitura possível, do ser andrógino, luminoso, que vai fazer avançar esta nossa dimensão humana, apequenada ainda, restrita ainda às dificuldades da carne, da morte, da paixão, do defeito. Essa idéia do ser redentor que vem para redimir a humanidade inteira. Essa música é de um momento em que estas coisas me interessavam muito. O Super-Homem da minha canção é um pouco isso.
Brown - Ele é negro?
Gil - Ele é arco-írico, tem todas as cores.
Brown - Você é a pessoa que eu mais vi defender e falar bem da cultura negra.
Gil - Claro, a cultura negra é defensável por vários motivos. Primeiro pela grandeza toda que ela significa. Tudo começou na África, segundo as especulações científicas. O próprio homo-sapiens, no momento em que o homem se ergue, verticaliza sua coluna, cresce sua caixa craniana e ganha esta dimensão de homem como a gente conhece hoje, esse salto teria ocorrido no continente africano. Além do mais, há as culturas que se desenvolveram na África às margens do Nilo ou na África central. A metalurgia, o grande desenvolvimento das atividades pastoris começou ali, a habilidade no tratamento do gado etc. São várias coisas que, do ponto de vista do desenvolvimento geral da humanidade tal como se considera hoje, surgiram na África.
Pós-tropicalismo
Brown - De Neandertal a Rolling Stones, você se considera um negro "Satisfaction"? (risos)
Gil - Eu sou um negro baiano, que já é uma condição diferente, nascido numa família de classe média, pai médico, mãe professora. Eu sou um negro incluído e não excluído.
Brown - Você foi prefeito de Salvador...
Gil - Eu fui vereador...
Brown - Não! Você foi prefeito para todo mundo, não para os caras lá em cima, mas para a gente com necessidade...
Gil - No ambiente da negada...
Brown - Você acha que eu sou um pós-tropicalista?
Gil - Você? Sem dúvida nenhuma. Você é tropicalista e pós-tropicalista. O seu trabalho, a sua atitude, o seu corte intelectual, operacional se insere completamente na matriz tropicalista.

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