São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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O pior corporativismo

ROBERTO CAMPOS

"A capacidade de justiça do homem torna possível a democracia; a capacidade de injustiça do homem torna a democracia necessária."
Reinhold Niebuhr

A Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho e a Associação dos Magistrados Brasileiros estão dando ao país, neste momento, um dos piores e menos defensáveis exemplos de corporativismo danoso ao interesse geral.
Essas associações costumam viver numa zona cinza, ocupadas e manipuladas por grupos que fazem da representação da profissão, aproveitando-se do fato de que as pessoas sérias raramente têm tempo e estômago para as futricas e brigas para ocupar o espaço corporativo. A OAB conseguiu a façanha de ser mencionada três vezes na "Constituição besteirol" de 1988. É talvez o único caso no mundo em que um clube de profissionais conseguiu sacralização no texto constitucional...
Mas o grave é que esses grupos estão hoje procurando opor-se à adoção do "efeito vinculante" no projeto de reforma do Judiciário. É grave, e muito, por várias razões. O Judiciário é hoje, na unanimidade do sentimento do país, uma de nossas mais ineficientes instituições (e certamente a única imune a qualquer tipo de avaliação ou controle externo).
Não porque os juízes sejam venais, indolentes ou irresponsáveis. Pelo contrário, a qualidade pessoal da nossa magistratura é geralmente reconhecida como adequada. A questão é que tudo funciona mal, lento, caro, imprevisível e incerto -e justiça lenta, cara e incerta não é justiça. Sabe-se que os burocratas não são propensos a calcular as consequências da variável "tempo"; o Judiciário é ainda menos "datado" do que o resto da burocracia.
Alegam os porta-vozes das associações referidas que o "efeito vinculante" diminui a independência dos juízes. Alegação improcedente, quando não tola, e de má-fé. A independência do juiz não é uma faculdade absoluta, poder fazer o que queira sem dar satisfações. O juiz não tem, nem pode pleitear, moral ou profissionalmente, nenhuma independência diante da lei. Ele é, tem de ser, pelo contrário, um servidor incondicional da lei. A independência do magistrado refere-se a pressões políticas que tentem desviá-lo do caminho reto do cumprimento do dever, para favorecer uma parte com sacrifício dos legítimos direitos de outra.
O efeito vinculante, que é a regra nas democracias avançadas -onde se procura limitar a proliferação doentia de leis, decretos, atos normativos etc., que levam, no nosso país, a incerteza jurídica ao paroxismo-, significa simplesmente que os juízes devem seguir a jurisprudência firmada nos tribunais superiores.
Isso não é, como espantosamente afirmou o presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho de São Paulo, submeter o juiz às cúpulas dos tribunais -como se as decisões das instâncias superiores fossem atos arbitrários de uma autoridade policial num regime de força.
A verdade é exatamente o contrário. O primeiro e mais absoluto dos direitos do cidadão está no pleno conhecimento da lei. E, para isso, é preciso que a lei seja uniforme e clara, e que haja uma única fonte de interpretação definitiva. Hoje, o cidadão não tem defesa, e a justiça é brutalmente prejudicada. Cerca de 80% dos casos levados ao Supremo Tribunal Federal referem-se a matéria já julgada.
O cidadão é espoliado no seu direito mais elementar de cidadania. Se quiser defender um direito, tem de refazer todo o caminho até o Supremo, com enorme desperdício de dinheiro, e com a perda de anos até ter uma sentença que apenas reafirma o que já passara em julgado em casos idênticos.
É tão pouco justificável essa absurda desordem como o seria instituir o questionamento da obediência dos enfermeiros às decisões do médico, ou do motorista de um carro às do guarda que esteja, na esquina, controlando o tráfego. Hierarquias são naturais e indispensáveis em qualquer estrutura organizada e em qualquer processo que envolva multiplicidade de participantes e de interesses. O que as faz legítimas é a sua forma e o seu objetivo final. Não há nada de humilhante em o cidadão obedecer ao guarda de trânsito. Seria intolerável, por outro lado, um tapa na cara do motorista.
A quem aproveita a atual situação? A dois tipos de pessoas que igualmente não merecem atenção: os corporativos que vêem no Estado de coisas um meio para multiplicar o número de pleitos e engordar o seu "mercado"; e aqueles que querem aparecer nos jornais, chamar a atenção sobre as suas pessoas, obter publicidade.
Os primeiros estão não só redondamente enganados nas suas expectativas, como na verdade atrapalham os profissionais sérios. A vinculação dos julgados e a maior clareza e limpeza do cenário jurídico de modo algum diminuirão o número de pessoas que procurarão a Justiça. É provável até que, por aumentarem a confiança no sistema jurídico, estimulem muitos a fazê-lo.
Quanto aos que querem "cartaz" -bem, não é novidade no mundo... Alcebíades, em Atenas, há 25 séculos, cortou o rabo do cachorro... Mas rabo de cachorro é menos sério do que o império da lei.
E, para que não se esqueçam alguns aspectos aparentemente mais prosaicos, a modernização econômica do país, e até a própria estabilidade monetária e a competitividade internacional, requerem, em não pequena medida, a atualização e o aumento da eficiência do sistema jurídico. As coisas, como estão hoje, conspiram perigosamente contra a expansão e o funcionamento ótimo da economia brasileira.
Sabe-se que o Supremo Tribunal Federal é favorável à vinculação. Não se poderia esperar outra posição da mais alta corte do país. O Supremo é o guardião da grande tradição jurídica brasileira, e a sua posição é a que melhor resguarda não apenas os mais altos interesses públicos (e é bom que se chame atenção para este ponto), mas o próprio respeito devido à magistratura, que não deve ser deixado levar de roldão pelo insensato apego a interesses subalternos.
Certo dia, há cerca de 30 anos, num despacho com o presidente Castello Branco, ouvi do venerável ministro da Aeronáutica, Eduardo Gomes, sobrevivente de várias refregas, uma acusação hirsuta que me deixou perplexo:
- "A Revolução errou", disse ele. "Expurgamos os corruptos do Congresso, do Executivo e das Forças Armadas. E deixamos intacto o mais corrupto dos poderes: o Judiciário". (Castel- lo aumentou o número de juízes do Supremo, mas respeitou o mandato dos incumbentes hostis; só subsequentemente, no governo Costa e Silva, é que três supremos magistrados, aliás moralmente dignos, foram afastados).
Àquele tempo o julgamento da Justiça pelo austero brigadeiro me pareceu injusto. Agora, começo a ter dúvidas...

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