São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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Mensagens numa garrafa para um mundo em liquidação

THEODOR W. ADORNO
PESSOA CHAVE

O tipo presunçoso que só se considera alguma coisa ao ser confirmado pelo papel que desempenha em coletivos que não o são, e que existem meramente em nome da coletividade; o representante com uma braçadeira; o orador arrebatado, que tempera seu discurso com espirituosidade salutar e antecede sua observação final com um espirituoso "Oxalá assim fosse"; o abutre caridoso e o catedrático que correm de um congresso a outro -todos eles, um dia, provocaram o riso próprio dos ingênuos, dos provincianos e dos pequeno-burgueses. Agora, a semelhança com a sátira oitocentista foi descartada; o princípio difundiu-se, de forma obstinada, das caricaturas para a totalidade da classe burguesa. Não apenas seus membros foram submetidos a um persistente controle social, pela competição e pela cooptação em sua vida profissional, como também sua vida particular foi absorvida pelas formações reificadas em que se cristalizaram as relações interpessoais. As razões, para começar, são cruamente materiais: somente proclamando o consentimento através de serviços louváveis prestados à comunidade como tal, pela aceitação num grupo reconhecido, nem que seja uma simples loja maçônica degenerada em clube de boliche, é que se consegue a confiança, compensada pela conquista de fregueses e clientes e pela concessão de sinecuras. O cidadão substancial não se qualifica meramente pelo crédito bancário, nem tampouco pelos deveres para com suas organizações; ele deve dar seu sangue, e também o tempo livre que lhe sobra da roubalheira, ao posto de presidente ou tesoureiro de comissões para as quais tanto é arrastado quanto sucumbe. Não lhe resta nenhuma esperança, a não ser a homenagem obrigatória na circular do clube quando o ataque cardíaco o alcança. Não ser membro de coisa alguma é despertar suspeitas: quando se pleiteia a naturalização, é-se expressamente solicitado a arrolar os grupos a que se pertence. Isso, porém, racionalizado como sendo a disposição do indivíduo de abandonar seu egoísmo e de se dedicar a um todo -que, a rigor, nada mais é do que a objetivização universal do egoísmo-, reflete-se no comportamento das pessoas. Impotente numa sociedade esmagadora, o indivíduo só vivencia a si mesmo enquanto socialmente mediado. Assim, as instituições criadas pelas pessoas são ainda mais fetichizadas: desde o momento em que os sujeitos passaram a se conhecer somente como intérpretes das instituições, estas adquiriram o aspecto de algo divinamente ordenado. O sujeito sente-se até a medula -certa vez, ouvi um patife usar publicamente essa expressão sem despertar risos- mulher de médico, membro de um corpo docente ou presidente da comissão de especialistas religiosos, do mesmo modo que, em outras épocas, alguém podia sentir-se parte de uma família ou de uma tribo. Ele volta a se tornar, na consciência, aquilo que era em seu ser, de qualquer maneira. Comparada com a ilusão da personalidade autônoma, que teria uma existência independente na sociedade da mercadoria, essa consciência é a verdade. O sujeito realmente não é nada além de mulher de médico, membro do corpo docente ou especialista em religião. Mas a verdade negativa transforma-se numa mentira como positividade. Quanto menos sentido funcional tem a divisão social do trabalho, mais obstinadamente os sujeitos se agarram àquilo que a fatalidade social lhes infligiu. A alienação transforma-se em intimidade, a desumanização, em humanidade, e a extinção do sujeito, em sua confirmação. A socialização dos seres humanos, hoje em dia, perpetua sua associalidade, ao mesmo tempo que não permite ao desajustado social nem sequer orgulhar-se de ser humano.
Terminologias legais
O que os nazistas tinham feito com os judeus era inominável: a linguagem não tinha palavras para expressá-lo, já que até assassinato em massa teria soado, diante daquela totalidade sistemática e planejada, como alguma coisa vinda dos bons tempos dos assassinos em série. No entanto, era preciso descobrir um termo, para que se poupasse às vítimas -afinal, numerosas demais para que seus nomes fossem lembrados- a maldição de que nenhum pensamento se voltasse para elas. Assim, cunhou-se em inglês o conceito de genocídio. Mas, ao ser codificado, tal como é estipulado na Declaração Internacional dos Direitos Humanos, o inominável tornou-se, para fins de protesto, comensurável. Mediante sua elevação à categoria de conceito, sua possibilidade foi virtualmente reconhecida: uma instituição a ser proibida, discutida. Um dia, talvez haja negociações na assembléia das Nações Unidas para determinar se alguma nova atrocidade enquadra-se na categoria de genocídio, se as nações têm o direito de intervir, um direito que de qualquer modo elas não querem exercer, e se, diante da dificuldade imprevista de empregá-lo na prática, todo o conceito de genocídio não deveria ser eliminado dos estatutos. Logo depois, haverá manchetes nas páginas internas, em jargão jornalístico: Programa de genocídio do Turquestão Oriental quase completo.
A liberdade como eles a entendem
As pessoas manipularam a tal ponto o conceito de liberdade, que ele acabou por se reduzir ao direito dos mais fortes e mais ricos de tirarem dos mais fracos e mais pobres o que estes ainda têm. As tentativas de modificar isso são encaradas como intromissões lamentáveis no campo do próprio individualismo, que, pela lógica dessa liberdade, dissolveu-se num vazio administrado. Mas o espírito objetivo da linguagem não se deixa enganar. O alemão e o inglês reservam a palavra "livre" (na acepção de "grátis", N. da T.) para os bens e serviços que não custam nada. À parte a crítica da economia política, isso testemunha a falta de liberdade que a relação de troca, ela mesma, pressupõe; não há liberdade enquanto tudo tem um preço e, na sociedade reificada, as coisas isentas do mecanismo de preço só existem como rudimentos lastimáveis. Ante uma inspeção mais rigorosa, costuma-se constatar que também elas têm seu preço e constituem migalhas dadas juntamente com as mercadorias, ou, pelo menos, com a dominação: os parques tornam as prisões mais suportáveis para quem não está dentro delas. Entretanto, para as pessoas de temperamento livre, espontâneo, sereno e imperturbável, que da falta de liberdade extraem a liberdade como um privilégio, a linguagem reserva, prontinho, um nome apropriado: desaforo.
Les adieux
"Adeus" foi, durante séculos, uma fórmula vazia. Agora, os relacionamentos seguiram o mesmo caminho. A despedida é obsoleta. Dois sujeitos íntimos podem separar-se porque um deles mudou de endereço; as pessoas, de qualquer modo, já não se sentem à vontade numa cidade, mas, como consequência última da liberdade de movimentação, submetem sua vida inteira, até espacialmente, às condições mais favoráveis do mercado de trabalho, quaisquer que sejam elas. Aí, acabou-se, ou então elas se encontram. Estar permanentemente afastado e ater-se com firmeza ao amor tornou-se impensável. "Oh, separação, fonte de todas as palavras!" -mas a fonte secou, e não se vê mais nada além de "bye-bye" ou "tchau". O correio aéreo e a entrega rápida substituem por problemas logísticos a espera ansiosa pela carta, mesmo quando o parceiro ausente não deixou nada que não se possa entregar palpavelmente como lastro. Os diretores das empresas aéreas podem fazer discursos comemorativos sobre o quanto de incerteza e pesar é assim poupado às pessoas. Mas a liquidação do adeus é uma questão de vida ou morte para a idéia tradicional de humanidade. Quem ainda conseguiria amar, se fosse excluído o momento em que o outro ser corpóreo é percebido como uma imagem que condensa toda a continuidade da vida, como que numa fruta suculenta? Que seria da esperança sem a distância? A humanidade foi a consciência da presença do que não está presente, daquilo que se evapora num estado que confere a todas as coisas ausentes a aparência palpável da presença e do imediato; portanto, sente desprezo por aquilo que não se compraz com essa simulação. No entanto, insistir na possibilidade intrínseca da separação, frente a sua impossibilidade pragmática, seria uma mentira, pois o interior não se desdobra dentro dele mesmo, mas apenas em relação ao objetivo; "interiorizar" uma exterioridade desmoronada violenta o próprio interior, ao qual resta alimentar-se como que de sua própria chama. A restauração dos gestos seguiria o exemplo do professor de literatura alemã que, na véspera do Natal, ergueu por um momento seus filhos adormecidos diante da árvore reluzente, para provocar um déjà vu e mergulhá-los no mito. Uma humanidade que atinja a maioridade terá que transcender seu próprio conceito do enfaticamente humano, positivamente. Caso contrário, sua negação absoluta, o desumano, sairá vencedora.
Honra de cavalheiros
Frente às mulheres, os homens assumiram o dever da discrição, um dos meios pelos quais se faz a crueza da violência parecer atenuada, um controle como concessão mútua. Visto que eles proscreveram a promiscuidade para se assegurarem da mulher como objeto de posse, apesar de ainda precisarem da promiscuidade para impedir sua própria renúncia de se elevar a um nível insuportável, os homens fizeram àquelas mulheres de sua classe que se entregam sem o casamento a promessa tácita de não falar desse assunto com nenhum outro homem, ou de infringir o ditame patriarcal da reputação feminina. A discrição tornou-se, pois, a fonte gozosa de todo o sigilo, de todos os triunfos ardilosos sobre os poderes existentes e, a rigor, até da confiança, mediante a qual são formadas a distinção e a integridade. A carta que Hõlderlin dirigiu a sua mãe depois da catástrofe fatal de Frankfurt -sem se deixar levar, pela expressão de seu extremo desespero, a dar qualquer indício da razão de seu rompimento com Herr Gontard, ou sequer a mencionar o nome de Diotima, enquanto a violência da paixão transmudava-se em palavras pesarosas sobre a perda do aluno que era filho de sua amada-, essa carta eleva a força do silêncio consciencioso ao ardor da emoção, e faz desse próprio silêncio uma expressão do conflito insuportável entre o direito humano e o direito daquilo que existe. Mas, assim como, em meio à falta de liberdade universal, cada traço de humanidade dela arrancado torna-se ambíguo, o mesmo acontece com a discrição masculina, que se reputa tão-somente nobre. Ela se converte num instrumento de vingança da mulher por sua opressão. O fato de os homens terem que ficar calados entre si -a rigor, de toda a esfera amorosa assumir um aspecto maior de sigilo, quanto mais distintas e bem educadas são as pessoas- proporciona às mulheres oportunidades que vão desde a mentira conveniente até a tapeação dissimulada e irrestrita, e condena os cavalheiros ao papel de imbecis. As mulheres da classe alta adquiriram toda uma técnica de isolamento, de manutenção dos homens à distância e, por fim, de uma separação deliberada de todas as esferas do sentimento, do comportamento e da valorização, na qual a divisão do trabalho masculina reproduz-se grotescamente. Isso lhes permite manipular com perfeito equilíbrio as situações mais complicadas -ao preço da própria intuição, de que elas tanto se orgulham. Os homens tiraram disso suas próprias conclusões, conspirando no "sous-entendu" sarcástico de que as mulheres simplesmente são assim. A piscadela que implica que "così fan tutte" repudia qualquer discrição, mesmo que não se revele nenhum nome, e tem ainda a justificativa de saber que, infalivelmente, qualquer mulher que se aproveite do cavalheirismo do amante terá traído, ela mesma, a confiança que ele lhe votou. Assim, a mulher que é mulher, e que se recusa a fazer da cortesia uma chacota dos bons costumes, não tem alternativa senão pôr de lado o desacreditado princípio da discrição e, aberta e despudoradamente, assumir seu amor. Mas, quem tem forças para isso?
Post festum
A dor pela deterioração dos relacionamentos amorosos não é apenas, como se supõe, o medo da retirada do amor, nem o tipo de melancolia narcísica descrito por Freud com tanta perspicácia. Nela também está envolvido o medo de que o sentimento do próprio sujeito seja transitório. Tão pouca é a margem que resta para os impulsos espontâneos, que qualquer um a quem eles ainda sejam concedidos vivencia-os como uma alegria e uma dádiva, mesmo quando eles causam dor, e chega até a experimentar os derradeiros vestígios aflitivos da intuição como um bem a ser ferozmente defendido, para que o próprio sujeito não se transforme numa coisa. O medo de amar o outro é, sem dúvida, maior que o de perder o amor desse outro. A idéia -que nos oferecem como um consolo- de que, dentro de alguns anos, não entenderemos nossa paixão e seremos capazes de deparar com a mulher amada, acompanhada, sem experimentar nada além de uma curiosidade surpresa e passageira, consegue ser sumamente exasperante para aquele a quem é apresentada. É o cúmulo da blasfêmia a idéia de que a paixão, que rompe o contexto da utilidade racional e parece ajudar o eu a escapar de sua prisão monádica, seja uma coisa relativa, capaz de ser reajustada à vida individual através da ignominiosa razão. No entanto, inescapavelmente, a própria paixão, ao vivenciar o limite inalienável entre duas pessoas, é forçada a refletir exatamente sobre esse impulso, e com isso, no ato de ser dominada por ele, a reconhecer a futilidade de sua dominação. Na verdade, sempre se soube da inutilidade; a felicidade estava na idéia absurda de ser arrebatado, e cada uma das vezes em que isso deu errado foi a última, foi a morte. A transitoriedade daquilo em que a vida mais se concentra irrompe justamente nessa concentração extrema. E, ainda por cima, o amante infeliz tem que admitir que, exatamente onde julgava estar esquecendo de si, amava apenas a si mesmo. Nenhuma dose de franqueza permite sair do círculo culpado do natural; isso só se consegue com a reflexão sobre quão fechado ele é.

Tradução de Vera Ribeiro.

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