São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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Vida artificial expande conceitos da arte

JOSÉ WAGNER GARCIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A pesquisa da vida artificial trabalha com parâmetros fundantes em toda atividade científica. Máquinas artificiais devem exprimir uma correlação tão perfeita quanto possível com os modelos naturais do qual derivam, em função de sintetizarem comportamentos ou ações equivalentes.
É importante perceber que esta extrema regularidade, tanto no modelo que se pode extrair da natureza quanto na própria maneira de gestação pela inteligência humana, possui uma porção de irregularidade, de espontaneidade, de que provém tudo o que é novo na ordem natural.
Para haver evolução é preciso haver mudanças, mutações. É preciso ocorrer a ação ontológica do acaso sobre a determinação da lei que rege o processo genético. Uma subversão à ordem instalada.
O erro, a falha, é sempre gênese de uma nova ordem. A qualidade inteligente que rege o mecanismo vivo, biológico, é aquela que compreende a incompletude e se vale dessa condição essencial para ser organismo e existir no tempo. Da falha decorre a mudança, da mudança o crescimento e deste a complexidade. Complexidade que é a marca da inteligência e dos fenômenos vivos. Esse caráter processual, errático e evolutivo, ingerência do acaso sobre a regularidade da lei que descreve os fenômenos vivos, encontra correspondência em toda ação criadora.
A falibilidade em um sistema vivo é expressão de sua capacidade de incorporar a mudança de percurso. A competência de assimilar o erro para se estruturar em uma ordem de complexidade que se sobrepõe à determinada anteriormente.
Essa mesma plasticidade, que é a plasticidade mental, encontra ressonância na sutileza do signo estético. Espécie de fragilidade que há no signo que representa uma qualidade, qualidade que é o objeto de um sentimento estético. Este caráter na experiência da arte, tal como no processo vivo, flui também de uma falha que subverte a ordem de significação.
Criar sobre o erro
"Life it is" e "Life it could be" é a assertiva germinal da vida artificial. A mobilização do imaginário demanda a liberação ontológica dos estoques de complexificação que são armazenados na interioridade da consciência do homem.
É o padrão de uma inteligência genética e estética que recolhe do imaginário -armazém de possibilidades não atualizadas- outros percursos possíveis, realizáveis, em detrimento daquilo que já estava previsto. Vida artificial é artifício -exige a mesma feitura, a lide com a liberdade e o risco, a propriedade, que a obra de criação artística tem em não ter na regularidade a perfeição necessária para existir. O perfeitamente imperfeito, que é a marca real de tudo aquilo que é vivo e admirável.
O projeto DistúrBio
O Projeto DistúrBio, por exemplo, atualmente em desenvolvimento na USP e no Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), é uma obra de arte em processo que se inscreve nestes parâmetros e pretende a criação de um organismo artificial. Desenvolve uma espécie de estética evolucionária ou estética que se utiliza dos próprios processos gerativos naturais do modelo biológico.
Procedimentos de computação evolutiva e de técnicas de biologia molecular são recursos utilizados para a realização de um exercício estético de emulação de um fenômeno vivo sintético. As idéias embrionárias deste projeto surgiram em 1990, em Boston (EUA), nos laboratórios de bioquímica e informática da Universidade Harvard e do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachussetts).
O Projeto DistúrBio combina um processo evolutivo computacional e o processo evolutivo biológico e se propõe a emigrar uma informação genética de natureza binária para o padrão genético celular que foi gerado na evolução biológica natural.
Em termos operacionais segue-se um procedimento computacional no qual uma sequência ordenada de pares de base (DNA) é selecionada a partir de um processo evolutivo artificial realizado por um algoritmo genético.
Este algoritmo, que tem um comportamento evolutivo, é um programa desenvolvido a partir do modelo biológico do código genético e que reproduz suas propriedades de crescimento, seleção, mutação, reprodução e evolução em ambiente digital. Os pares de base são substâncias químicas que integram o DNA (ácido desoxirribonucléico), material constituinte dos cromossomos, que são responsáveis pela transmissão da informação genética.
A sequência selecionada é um padrão de dimensões moleculares desses pares de base. Utilizando procedimentos de engenharia genética, este padrão é inserido em um plasmídeo, ou seja, no código genético de um organismo natural escolhido para esta manipulação.
Um plasmídeo é uma dupla fita circular de DNA encontrada no código genético de algumas células, especialmente bactérias, e que é muito compatível com o procedimento pretendido.
Esta inserção provoca um reordenamento artificial da composição estrutural desta substância, criando uma espécie de "estranhamento" na ordem natural destes elementos.
Estética da inteligência
Como arte, o Projeto DistúrBio não se resolve completamente no âmbito mais convencional de criação, nem mesmo daquelas concepções artísticas que se utilizam de aparatos tecnológicos e temas científicos e que ainda assim não envolvem questões presentes na quebra deste paradigma.
Esta mudança vem crescentemente se apresentando no movimento interativo entre as ciências biológicas e as computacionais, e está refletida e tematizada nesta obra, que não se dirige a uma percepção sensorial, mas tem por objetivo provocar o padrão sensível de uma estética da inteligência.
Há duas ordens artificiais. Uma se aplica ao universo digital, às cadeias de relações genuinamente simbólicas sobre as quais se desenvolvem os critérios à concepção de modelos de vida artificial. A outra ordem é de natureza bioquímica, na qual a artificialidade se dá nos processos de manipulação do homem sobre a biologia molecular.
Outro padrão de vitalidade
O espontâneo, o livre, o artístico neste obra são a expressão de duas ordens de acaso, que são ontológicos no imaginário do artista e do fenômeno natural. Há uma circunstância de indeterminação em uma evolução no universo digital, computacional, um "acaso provocado" pela ordem entrópica que se instala na arbitrariedade decorrente de um número finito de pares de base. A outra indeterminação é a do acaso ontológico que atua na ordem bioquímica do organismo natural, do plasmídeo, submetido à evolução biológica.
São dois espaços semióticos artificiais, o espaço computacional, modelo sintético de cérebro humano, fruto da evolução natural, e o de manipulação bioquímica, dos processos realizados in vitro. São artificiais porque são manipulados cognitivamente. O universo digital é fruto indireto da natureza, pois como criação da mente humana é um fenômeno da evolução biológica, que volta-se sobre si mesmo, e gera conhecimento sobre sua própria biologia. Gesta um outro padrão de vitalidade, um padrão vital cognitivo para uma vida artefaturada.

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