São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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Uma senhora de 12 anos

JOSIAS DE SOUZA

São Paulo - "Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela." O uso do vocábulo "fluminense", tão fora de moda, denuncia que o Rio de que se falará a seguir é um Rio remoto, distante.
A frase abre um romance de José de Alencar, editado pela primeira vez em 1875. Chama-se "Senhora". Suas páginas nos trazem um Rio da corte, uma cidade de grandes bailes.
A "estrela" que se insinua logo na primeira frase é Aurélia Camargo, órfã endinheirada à busca de noivo. "Tinha ela dezoito anos (...)", introduziu o escritor. Era "virgem" e "casta", dona de "perfeição estatuária" e "talhe de sílfide".
O texto de José de Alencar segue tricotando adjetivos e despejando-os sobre Aurélia. Mas pararemos por aqui. O que nos importa é reter a imagem da mulher desse Rio de 121 anos atrás, casta aos 18.
Abra-se agora espaço para um texto estalando de novo, escrito neste maio de 1996. "Sendo irrestrito o acesso à mídia, não se mostra incomum reparar-se a precocidade com que as crianças de hoje lidam, sem embaraços quaisquer, com assuntos concernentes à sexualidade (...)."
Está-se reproduzindo parecer do ministro Marco Aurélio, do STF. Um parecer que libertou um homem, 24, que manteve relações sexuais com criança de 12 anos, M.A.N.
"Nos nossos dias não há crianças, mas moças de 12 anos", prossegue o ministro. "Precocemente amadurecidas, a maioria delas já conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades."
Tomadas assim, ao pé da letra, as palavras revelam uma novidade abjeta. A infância e a adolescência perderam-se no intervalo de um século. A senhora do escritor rejuvenesceu. A menina de 12 é uma utopia.
Podemos violá-las à saciedade. A TV, promíscua, absolve-nos a todos. O que falta a Marco Aurélio é uma filha, uma senhora de 12 anos, "precocemente amadurecida".

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