São Paulo, terça-feira, 28 de maio de 1996
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Homens da lei sabem como intimidar mulheres

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os recentes casos de duas mulheres envolvidas em denúncias de assédio sexual e estupro, respectivamente numa delegacia de Campinas, São Paulo, e no Supremo Tribunal Federal (STF), são reveladores não apenas de que a mulher é o sexo oprimido numa sociedade sob o evidente jugo masculino, como também de que o pior inimigo de uma mulher são as outras mulheres.
No último dia 15, a manicure Cláudia Cavalcante, 33, acusou de assédio sexual o técnico de futebol Wanderley Luxemburgo. Cláudia teria sido chamada pela recepção do hotel Vila Rica, em Campinas, para tratar das unhas do técnico.
Na versão dela, Luxemburgo recebeu-a, depois de um banho, exibindo os órgãos sexuais por entre uma toalha que trazia enrolada na cintura. O técnico teria acochado Cavalcante contra a parede e tentado impedi-la de sair.
Em entrevista coletiva à imprensa, em pronunciamento constrangedor pela quantidade de erros de português, Luxemburgo negou tudo. Confrontadas, as declarações da manicure e do técnico se distinguem pelo menos na intensidade do tom -difícil acreditar que Cláudia Cavalcante mentiu ao descrever a lembrança sensorial e o nojo do hálito e do cheiro do técnico.
A história é marcada pelas tintas do mundo machista e kitsch do futebol, em que homens pobres e semi-analfabetos ficam ricos do dia para a noite, enchem o pescoço de correntes de ouro, andam de carro importado e loiras a tiracolo e agem como os novos donos do mundo.
Um fato surpreende nesse caso Cavalcante contra Luxemburgo: a única outra mulher citada no episódio, a recepcionista do hotel, Célia Regina Iecks, 42, desmentiu a versão da manicure.
Supondo que a versão de Cavalcante seja verdadeira, a recepcionista Iecks surge como sua inimiga número 1, exemplo do que Schopenhauer chamou de "odium figulinum" que mulheres sentem umas pelas outras: ódio mútuo que acomete aqueles envolvidos no mesmo negócio. Que negócio? Servir ao homem, já que as mulheres seriam incapazes de ter interesse objetivo por qualquer outra coisa que não conquistar um macho.
Mais surpreendente é o caso de absolvição pelo STF, no último dia 21, de Márcio Luiz de Carvalho, já condenado pela Justiça de Minas Gerais, e cumprindo pena desde 1995, pelo suposto estupro de uma menina de 12 anos, em 1991.
Contrariando o Código Penal -que diz que, consentida ou não, a conjunção carnal com menores de 14 anos é estupro -, três do cinco ministros do STF, todos homens, votaram pela absolvição, alegando que, por culpa da mídia, "nos dias de hoje, não há crianças, mas moças de 12 anos".
Dificilmente o contrário -o assédio de uma mulher a um menino de 12 anos- teria o mesmo julgamento. Conclui-se que, para ser tão facilmente intimidada e derrotada pelos homens da lei, de duas uma: ou nasceu predestinada para carregar o karma de prostituta, ou a mulher é mesmo um ser extremamente idiota.

E-mail mfelinto@folha.com.br

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