São Paulo, terça-feira, 28 de maio de 1996
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O Exército vai lutar contra novos inimigos

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Eu sou segundo-tenente de cavalaria da reserva do Exército brasileiro. Melhor dizendo, fui rebaixado, depois, para terceiro-sargento da reserva, por não ter feito o curso de aperfeiçoamento.
Mas sou um orgulhoso cavalariano da turma de 62, número 2611, apesar de quase ter sido expulso por minhas atividades estudantis, quando eu fazia o jornal "O Metropolitano", de notória tendência marxista-leninista, semanário que era lido com avidez pelos órgãos de repressão do Exército e onde só fui mantido graças à ajuda do camarada-sargento Júpiter, da administração do quartel, que me avisou: "Olha, tu vai ser desligado".
Foi quando meu pai veio em meu socorro. Meu pai entrou no quartel todo fardado; ele era brigadeiro da Aeronáutica, e suas dragonas douradas brilhavam quando ele entrou e foi falar com o meu comandante, sob as continências dos soldados e sob meu olhar encantado com aquela mistura de apoio paterno e aliança das Forças Armadas em meu benefício, eu, um reles comuna, sim, que sonhava em derrubar o imperialismo e seus aliados.
Eu me senti entre a espada e a ideologia, vagamente culpado pelo "pistolão" e também estourando de orgulho com aquela confabulação de generais, forças aérea e terrestre em meu favor. Não fui expulso e, hoje, confesso que não foi a única vez que tive orgulho do Exército.
Preparem um cavalo, jovens de hoje -o meu se chamava Himalaia-, preparem um cavalo para o desfile, rapaziada de 17 anos, passem vaselina no animal para que ele brilhe ao sol da avenida, lavem os cascos da montaria com óleo, coloquem-lhe os arreios de luxo, cruzados com talabardas brancas, façam uma trança com sua crina e, com os freios luzindo como ouro puro, peguem uma lança com flâmulas coloridas e desfilem no 7 de Setembro ao som de uma banda marcial. Dentro de culotes, botas e esporas, digam-me se vocês não vibrarão em triunfo.
Eu, o comuna montado, o bolchevique de cabelo zero, o trotskista de esporas, tremia de emoção patriótica, enquanto escoltava o general Justino Alves Bastos pela avenida. Claro que não eram só esses dias de fulgor. O serviço militar sabia ser um inferno também.
Quantas noites brancas, limpando bosta de cavalo, correndo por São Cristóvão às três da manhã, para pegar a égua que os "canalhas" da Artilharia soltavam para nosso desespero -daí termos inventado a melodia: "Quem quiser comer alguém/ Seja noite ou seja dia/ Dê um pulo na Artilharia"-, quanto horror da lama de Gericonó, do medo pavoroso de desmontar um morteiro de 81 mm que não explodira, quanto pânico quando o tenente Rolim (onde andará?) nos fazia pular obstáculos na quinta da Boa Vista, por cima dos bancos de pedra onde famílias de Manet faziam piquenique.
Claro que era longa a noite em pé numa guarita, enquanto a madrugada passava; claro que poucos conhecem o martírio de calçar os cavalos com ferraduras em brasa, sob os coices alucinados dos ditos corcéis e sob as vaias dos infantes e artilheiros empoleirados na cerca.
Tudo isso me matava de desespero, mas ia criando um casco nesta alma frágil, que lia Rimbaud no vestiário e que, uma vez, para pasmo do major Coelho, trouxe uma contribuição literária para a revista do Exército, que era uma poesia trans-sintática sobre "O Cavalo", poema infelizmente nunca publicado pelos oficiais acadêmicos e hoje perdido para a literatura e que (ainda lembro) falava em "o cavalo e sua quilha, vogando entre lanças, num campo de Ucello", recitado com ardor para o major Coelho, que ficou achando que eu era viado.
Claro que depois, em 64, vi a UNE pegar fogo comigo dentro, claro que tudo depois foi o horror da luta política, da repressão, todo aquele baixo astral em que as exigências de multinacionalização do capital nos atirou. Sob capas ideológicas, foram montados os "anos de milagre" para instalar um mercado de consumo supérfluo. Tremendo horror. Mas, naqueles anos, eu via também certos detalhes da vida militar que me dão ainda hoje um travo de poesia brasileira.
Os oficiais garbosos de uniforme vestiam suas pobres roupas paisanas no fim do expediente e iam para casa de bonde, visivelmente sozinhos e pobres, em busca de suas famílias; ali, na tristeza daqueles dias militares, havia uns momentos de beleza rude; havia as cornetas soando nas madrugadas cinzas, havia uma certa pureza medieval nos caibros das cocheiras, no cal das árvores pintadas, na comida brasileira das cantinas, no tosco desejo de ordem e progresso, num comovente patriotismo xucro e ingênuo. Havia um encanto suburbano nos milicos, nos soldos rasos, no orgulho dos uniformes, uma coisa positivista mixuruca que se sentia nas entrelinhas das fileiras, como em batalhões de "policarpos quaresmas".
Não era na arrogância que estava a importância dos militares; era justamente nas frestas do cotidiano, onde eles menos pensavam, que estava sua missão impressentida. Nos bivaques e acampamentos, no texto parnasiano das ordens do dia, ali estava uma poesia suja, uma poesia burocrática que tinha uma coisa muito rara no Brasil: uma rala ideologia nacional, um tosco desejo de construir um país, tão estuprado pelos que realmente deitaram e rolaram no milagre brasileiro, transformando o Estado neste bordel de hoje. Naqueles hinos militares que falavam em "Pátria adorada", havia um projeto de Brasil até meio ridículo, mas puro. Hoje, não há mais bolchevistas infiltrados que invadirão nossa terra sagrada.
Quem tinha que invadir já invadiu: as corporações de marajás, os empresários subsidiados, os "caixas dois" dos bancos. E nós e os milicos achávamos que os inimigos eram essas pobres ossadas enterradas no Araguaia. Hoje, os inimigos são a fome, a injustiça social, a miséria endêmica, a violência dos campos.
Quando eu servia o Exército, a sensação dominante que eu tinha era a do desperdício de toda aquela organização verde-oliva numa luta abstrata contra os pobres guerrilheiros do absurdo. Eu pensava em como essa imensa força de brasileiros de classe média poderia ser útil para "salvar" o Brasil.
Nesses anos de caserna, tive dois momentos de orgulho: um, quando meu pai entrou com as dragonas brilhando para me salvar; outro, quando meu coração vagabundo bateu na Presidente Vargas no 7 de setembro, em cima do meu pangaré Himalaia.
A terceira onda de orgulho que tive foi semana passada, vendo o general Zenildo Lucena doando 6 milhões de hectares de terras do Exército para a reforma agrária. Parecia que eu estava ouvindo a banda tocar a "Arma de Heróis", em 1962. E vi que o Exército pode ser a generosidade armada contra o dragão da maldade e do atraso.

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