São Paulo, terça-feira, 28 de maio de 1996
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Pilatos e a reforma agrária

CANDIDO MENDES

O Senado vem de emascular o projeto de lei de entrega do julgamento da violência das polícias militares à Justiça Civil e universal, sem corporativismo nem cartas marcadas das indulgências de ofício e infinitos adiamentos de sentença. Essa conquista democrática foi prometida por FH, no auge, ainda, da indignação cívica com o massacre de Eldorado do Carajás. O horror nacional ante a chacina deu ao presidente as condições de reforçar a credibilidade de um governo de mudança que tem na execução da reforma agrária o seu condão ou a sua caveira de burro.
Num Congresso onde surge com nova agressividade a bancada ruralista, animou-se o presidente a quebrar o tabu da intolerabilidade com a reforma, que abre frente à nação e aos senhores do status quo um conflito em dízima periódica, ou de sangramento sem suturas. Insensivelmente, já nos domesticamos ao espasmo periódico da indignação para o esquecimento, bem administrado com as provas do saudável intento governamental e o rito de seu exorcismo cívico. Por uma vez, agora, FH afrontou a impunidade clássica dos aparelhos de repressão, entregando o policial-jagunço à igualdade perante a pena e o juízo da nossa sociedade civil, desarmada e sofrida.
Durou pouco a satisfação popular. O Congresso tira com a mão esquerda o que o presidente, com a direita, prometeu ao país. Não contentes, os legisladores sangram na veia da insensibilidade política e pela primeira casa do povo, a Câmara dos Deputados. Dá esta todas as mostras de recusa à iniciativa legal de recusar a reintegração de posse dos indigitados proprietários da terra no caso de processos de desapropriação e assento rural, reconhecidos pelo Executivo como de gritante interesse público.
É cômoda essa culpa coletiva que ora assumem os parlamentares, embargando as moções de um governo tucano diante da questão, transformada em grande interdito da mudança e pedra de toque da confiabilidade do país dos excluídos. FH poderá render-se às tentações de Pilatos, entregando a nota de culpa ao Congresso de todos os emperros.
O presidente não descuidou também dos sacrifícios rituais, pedidos diante da hecatombe de Carajás, para o aplacamento da comoção nacional. Enviou à cena do morticínio o anjo tutelar dessas ocasiões, o general da fé ilibada e olhar transparente, para garantir o ouvido sumo do poder e a crença nas medidas a serem tomadas do mais fundo da cólera dos deuses no Planalto. Mesmo à paisana, ou deliberadamente nessa indumentária, o general Cardoso assegurou o cerimonial da distância e do olho sacral da autoridade, desfechável implacavelmente sobre o aranzel dos compadrios da impunidade local e da ordem incestuosa de policiais bandidos.
Cumprido o rito, não indagaria a opinião pública de sua sequência, instalada, miticamente, a certeza do desfecho e do trabalho das parcas do destino. Aí está o cenário do arrolamento monstro das testemunhas, da pólvora na pele das mortes à queima-roupa, da prisão dos executores ostensivos, ao sol da fresca nos quartéis. Carajás toma o caminho em que já começamos a enterrar, na memória esmaecida, Corumbiara e finalmente os seus três magros culpados, na violência cíclica da explosão anunciada, da ira amortecida e da solução sem saída.
O flagrante, entretanto, dos cadáveres retorcidos, em verdadeiros caminhões de Auschwitz, tornou-se insuportável à nossa cidadania de casa e jardim. Mas a que ponto interfere no rito da desativação final do que fizer, de que já se desincumbiu o presidente, diante dos legisladores, coriáceos e fagueiros? E como agirão as vestais tucanas hoje para fazer prevalecer a vontade legislativa do Planalto, que se entregou à "real politik" e seu "physique du rôle", confiados aos corretores juramentados do PMDB? A aguardar ainda o gesto por sobre o exorcismo, o país olha para o ministro Jungmann e espera que lhe dê o Executivo o completo controle sobre o Incra, sem o qual qualquer Ministério da Reforma Agrária vira o Departamento da Baratária, na mudança do Estatuto da Terra no país.
Mas FH não pediu ainda a bacia de Pilatos para demonstrar à nação a desídia do Congresso frente ao escândalo cansativamente repetido. Afinal, o conflito da terra tem ou não a marca das urgências e do recurso às medidas provisórias que hoje governam o país? Por que só o econômico as justifica, jamais as motivam as tensões da miséria? Se, de fato, a dita "questão social" não é mais "questão de polícia" -como ainda pensa a Confederação Nacional de Agricultura-, medidas exemplares no âmbito da posse da terra e no controle da violência rural podem estar ao alcance de uma canetada do presidente. A decisiva e indiscutível, de quem não quer, na mais democrática e elegante das arguições de impotência, lavar as mãos diante do Congresso, menos surdo do que esperto.

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