São Paulo, quarta-feira, 29 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A reorganização da poupança

LUÍS NASSIF

Se quiser sair da enrascada política em que se meteu, o governo Fernando Henrique Cardoso vai ter que agregar a seus conhecimentos de sociologia uma melhor compreensão dos aspectos financeiros da globalização.
O primeiro movimento da globalização consiste na flexibilização das normas cambiais, permitindo a entrada de capitais especulativos.
O segundo, na aquisição de empresas locais, em geral pelo processo de privatização.
O terceiro -e mais relevante- consiste na reorganização da poupança, visando investir na economia real, seguindo tendência mundial.
O período de 1979 a 1990 significou o predomínio da renda fixa. Em nível mundial, a despreocupação com as contas públicas gerou déficits gigantescos em quase todos os países, que precisavam ser financiados com endividamento público. Durante anos, megaendividamentos garantiram megalucros do capital financeiro internacional.
Esse movimento em torno da renda fixa já se esgotou no mundo e tende a se esgotar no Brasil -desde o momento em que as taxas de juros das aplicações (embora ainda não as do crédito) refluíram para níveis civilizados.
É nesse momento que se inicia o processo de reorganização da poupança, visando a economia real.
Hoje em dia, há várias pontas visíveis desse processo.
Uma é a dos grandes bancos de negócio, que estão investindo cada vez mais na pesquisa de empresas e negócios no Brasil, em reestruturação de gestão e de capital de grandes grupos.
Ao mesmo tempo, surgem no mercado os administradores de carteiras, apresentando-se como alternativa relevante aos fundos convencionais -em geral, dominados por bancos dotados de ampla rede de varejo.
No início, captavam apenas de grandes investidores. Gradativamente, estão passando a administrar pequenas poupanças, oferecendo uma gama de alternativas muito mais ampla do que os FIFs da vida.
Na semana passada, por exemplo, o Capital -fundo americano que administra mais de US$ 300 bilhões em ativos- associou-se ao brasileiro BBA, não para trazer recursos para o Brasil, mas para montar uma empresa visando captar a poupança interna para projetos internos.
Capital na veia
Trata-se de passo excepcional no processo de modernização da economia.
Historicamente, a poupança no país foi administrada centralizadamente pelo Estado, por meio de fundos públicos formados a partir dos anos 50 (que garantiram desenvolvimento) e da política de open, que canalizava toda a poupança privada para o financiamento do déficit público (sustentando a estagnação).
Na nova etapa, o capital financeiro será injetado diretamente na veia das empresas nacionais, pautado por processos rigorosos de análise -nos quais se incluem preocupações com estruturas familiares, transparência nos números e respeito aos minoritários.
Se o governo acelerar a modernização do mercado de capitais, a reformulação da Lei das Sociedades Anônimas e o papel regulador da Comissão de Valores Mobiliários, todo esse movimento será canalizado para capitalizar e modernizar as empresas nacionais e implantar definitivamente o conceito de sociedade anônima no país.
Se se mantiver nesse ramerrame sociológico, servirá apenas para adquirir empresas no fundo do poço.
É nesse contexto de mudanças que se inserem a reforma dos fundos de pensão e a privatização com as chamadas moedas sociais -permitindo ao FGTS e aos demais fundos sociais transformar-se em fundos de investimento, garantindo o pecúlio dos trabalhadores, legitimando a privatização e viabilizando o mercado de capitais.
Paradoxos
É curioso esse jogo de causas e efeitos.
A despreocupação com o déficit público sempre foi marca dos chamados economistas keynesianos -que têm na Unicamp seu último reduto brasileiro.
Em entrevista à Folha, na última segunda, o ex-governador Orestes Quércia procedeu a uma autocrítica pungente: no seu tempo, financiar obras com déficit era visto como política sadia pelos economistas que o cercavam (todos da Unicamp).
Essa utilização desregrada do déficit público -que acabou liquidando com a carreira política de Quércia- foi, no fundo, a principal responsável pela explosão dos lucros do capital financeiro.
De certo modo, o capital financeiro deve tanto à PUC do Rio quanto à Unicamp.

Texto Anterior: Bolsa cai nos 100 anos do Dow Jones
Próximo Texto: Volks vai parar de fabricar o Fusca no próximo mês
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.