São Paulo, quarta-feira, 29 de maio de 1996
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Ciúme de Iago é o que move desrazão de Otelo

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Quem conhece a história de Otelo, o Mouro de Veneza, vai sempre se perturbar com uma coisa: a burrice do protagonista. Ele mata Desdêmona porque se deixa levar pelas intrigas incríveis de Iago. Todo o estratagema em torno do lenço, francamente, só um imbecil acreditaria naquilo a ponto de assassinar sua bem-amada mulher.
Mas esse raciocínio, bastante antipático, cai por terra quando se vê a peça de Shakespeare em funcionamento, como é o caso neste "Othello" de Oliver Parker, em cartaz no cine Belas Artes e no Calcenter.
Pouco importa se as "provas" que Iago apresenta do adultério de Desdêmona são fraquíssimas, quando o que vemos é o nascimento, a maturação e o rebentar da suspeita e do ciúme na alma de Otelo.
O espetáculo psicológico, o poder da dúvida, a corrosão de um caráter como o de Otelo de certo modo independem dos motivos, dos fatos, das calúnias de Iago. Tudo se torna plausível, porque parece vir de dentro de Otelo, não do bom senso do espectador.
Os críticos de arte, de teatro, de literatura comportam-se diante de Shakespeare como Otelo diante de Desdêmona. São desconfiadíssimos e precisam provar a própria inteligência através do exercício continuado da suspeita. Assim, em finais do século 19, o dinamarquês Georg Brandes aventou a teoria de que Otelo não era ciumento. "Ele não tem suspeitas, é confiante, e nessa medida estúpido... torna-se tão suspeitoso com relação a Desdêmona na medida em que não tem suspeita nenhuma com relação a Iago..."
Eis um exemplo do que faz a busca de originalidade crítica face a uma obra arquiconhecida. Torna-se necessário dizer algum absurdo, como o de que Otelo não é ciumento, para dizer algo de novo. Brandes -que foi um grande intelectual- insiste também no ponto de que Otelo não era negro.
É verdade que, na época de Shakespeare, qualquer pessoa mais morena era chamada de negra. Aparentemente, Otelo nasceu na Mauritânia, sendo assim um "mouro", isto é, alguém de pele olivácea, sangue africano, melancólico e turvo.
Só que a peça só funciona se Otelo for negro de verdade. O filme em cartaz mostra um ator -Laurence Fishburne- que é negro mesmo, "beiçudo" como recomenda o texto de Shakespeare.
Ei-lo vestido de uma túnica africana, enquanto soam batuques na trilha sonora, no instante em que vai fazer sexo com Desdêmona. O filme acentua, com acerto, o caráter inter-racial desse romance.
E aí está a razão de todo ódio, de toda malignidade de Iago. Na peça de Shakespeare, Iago é mesmo esse demônio, esse monstro de intriga. Só que faz a intriga por vários "bons motivos".
O primeiro é que acha injusto ter sido preterido, nas promoções da hierarquia militar, por Cássio, um intelectual. Odeia Otelo por essa escolha. O segundo é que é ciumentíssimo.
Iago é o grande ciumento da peça; imagina que Otelo já transou com sua mulher, Emilia. O terceiro, talvez o mais determinante, é que ele simplesmente acha errado que uma moça de alta estirpe, branca como o alabastro, entregue-se na cama a um negro como Otelo.
É a partir da diferença racial que a intriga se fortalece. É tão incrível que Desdêmona se entregue a esse bode preto, Otelo, que se torna crível que ela, no fundo uma devassa, possa entregar-se a qualquer um.
E Otelo percebe isso: começa a desconfiar de Desdêmona, porque se sente inferior a ela.
Iago, assim, é um agente da ordem, do bom-senso, da tradição: é instrumento da continuidade racial contra a mestiçagem, instrumento da ordem militar contra a nomeação indevida de Cássio, um filósofo, a postos marciais.
Iago quer destruir Otelo, porque ele é negro.
Mas a peça de Shakespeare também reduz Otelo, em sua estupidez, ao papel de "negro"'. Ele tem ciúme, porque se acredita abaixo socialmente de Desdêmona; só assim as intrigas de Iago lhe parecem convincentes.
Há um trecho suprimido na atual versão cinematográfica que mostra os nobres de Veneza muito espertos, vendo que a concentração de frotas muçulmanas numa determinada ilha é puro estratagema para a conquista de uma ilha muito mais importante, Chipre. Os nobres decidem defender Chipre, e não a ilha ameaçada pela astúcia dos muçulmanos.
O que é bom senso para os nobres venezianos é mistério para a alma de Otelo. Ele não percebe nada, é puro instrumento militar. E, como militar, tem a estupidez de quem sempre obedece ordens -as de Iago, claro, que é o diretor de toda a peça.
Na adaptação para o cinema, feita por Oliver Parker, há uma sutileza. Todos os atores, Desdêmona, Otelo, o pai de Desdêmona, o doge de Veneza, têm sotaque.
O único a falar inglês de verdade é Iago (Kenneth Branagh) e, imagino, sua mulher, Emilia. Sinal de que todos nós somos estrangeiros se nos identificarmos com o negro Otelo. Sinal de que a falsidade está no sotaque mais autêntico. Sinal de que as pessoas mais preocupadas com a injustiça, mais interessadas em repor as coisas em seus devidos lugares, como Iago, são as mais suspeitas em seu sotaque mais verdadeiro.
Uma montagem politicamente correta, portanto. Mas muito boa também. Para nós, negros e mouros, pelo menos.

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