São Paulo, sábado, 1 de junho de 1996
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Um homem no seu lugar

JANIO DE FREITAS

Lugar assegurado na história, não há dúvida de que ele tem. O lugar não é dos mais confortáveis, mas, para quem aceita o vale-tudo na busca feroz dos seus objetivos, isso é pormenor insignificante. E, como compensação para o desconforto, o lugar é de destaque. Na história da violência brasileira, com possível inclusão até mesmo na história universal das violências governamentais. Tantos são, porém, os seus feitos muito especiais, que não é justo conhecê-lo só pelo que o fez menos anônimo.
O sequestro das contas bancárias e da poupança, idealizado pelo agora ministro Antonio Kandir para ser o episódio inaugural dos assaltos no governo Collor, figura entre os atos propriamente administrativos com realce muito especial: trata-se de um dos atos mais coletivamente violentos já praticados, não importa a época, em regime não-ditatorial e dado como democracia constitucional. Em minha ignorância nada santa, não há outro que lhe seja comparável na conjugação de alcance e violência administrativa.
Grande número de juízes de primeira instância (a instância onde a Justiça brasileira ainda finca os pés no Direito) tentou fazer os princípios da Constituição valerem mais do que a invenção de Kandir. Não conseguiram, e talvez os ministros de então do Supremo Tribunal Federal jamais expliquem verdadeiramente por quê.
Se todos os sofrimentos causados pela cassação do direito de usar o dinheiro ganho legitimamente, sofrimentos em que não foram poucos nem os casos extremos de morte, pudessem chegar a processos criminais, o "impeachment" de Collor não aconteceria. O governo acabaria muito antes, com seus integrantes e idealizadores recolhidos a lugares de onde não poderiam sair para as delícias de Miami, nem para as delícias de um ministério. Muita gente, quase sempre a mais sacrificada, nem chegou a saber que o sequestro do seu dinheirinho acabou em roubo, com a devolução reduzida à metade do valor tomado.
Como produção mental relevante, porém, aquela não foi a primeira do professor Antonio Kandir. Foi, sim, a primeira a ter oportunidade de concretizar-se, o que agora volta a lhe ser dado no governo de Fernando Henrique. Muito antes do governo Collor já Kandir chamara a atenção. Na primeira metade dos anos 80, por exemplo, quando a economia internacional entrara em crise, o professor Kandir dedicou seus saberes a desvendar as entranhas do problema e traduzi-las para o mundo. Sua conclusão sólida, fundamentada na aplicação máxima de competência e seriedade: o capitalismo entrara nos estertores finais, estava liquidado.
Desde a conclusão apresentada pelo professor Kandir, o capitalismo não fez senão fortalecer-se, derrubando muros e perfurando muralhas que lhe detinham o alcance. Mas que ninguém se precipite na suposição fútil de que o professor Kandir deu uma vexatória mancada.
Quem errou foram os donos do dinheiro, que continuaram lendo os resultados das bolsas e as taxas de juros em vez de ler estudos rigorosos e competentes de professores como Kandir. Terão novas chances agora. Já que não o seguiram, o professor Antonio Kandir seguiu-se. Tornou-se propagandista e parlamentar do capitalismo arrasa-quarteirão. E, por isso mesmo e para isso mesmo, torna-se ministro. Com a competência e a seriedade que lhe garantiram um lugar em certa categoria da história e, pela capacidade de análise e previsão, espera-se que também na história intelectual.

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